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O encanto do Crucifixo

1- A Quaresma é um tempo profundamente cristão, um tempo católico, no sentido de especificamente nascido do dinamismo da Igreja, sem intuitos de cristianizar qualquer festa pagã anterior como acontece em muitos casos. A Quaresma enche o ritmo da Liturgia oficial da Igreja e está na alma do povo piedoso, quer em família quer individualmente. […]

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1- A Quaresma é um tempo profundamente cristão, um tempo católico, no sentido de especificamente nascido do dinamismo da Igreja, sem intuitos de cristianizar qualquer festa pagã anterior como acontece em muitos casos. A Quaresma enche o ritmo da Liturgia oficial da Igreja e está na alma do povo piedoso, quer em família quer individualmente.

A Quaresma não se presta a negócios, e algumas coisas que o mundo inventou não a afectaram profundamente, sejam velhas tradições de crítica social, já em desuso, seja o aproveitamento turístico dos primeiros dias da Primavera.

Pela sua profundidade eclesial, a Quaresma merece todo o nosso empenho de pastores da Igreja, das famílias e dos educadores. Eduquemo-nos na vivência da Quaresma como um dom extraordinário do amor de Deus, um retiro aberto, uma primavera da Igreja.

A Quaresma deve ser vivida em íntima comunhão com a Páscoa, e nunca fechada em si, à maneira estóica de ascese de autodomínio, nem sequer ao modo islâmico como tempo de mera purificação. É um tempo de exercitar o amor a Deus e aos outros de maneira mais intensa. Neste ano, o Santo Padre recomenda que fixemos o Crucifixo: hão-de olhar para Aquele que trespassaram.

 

2- O Crucifixo pode ser visto do nosso lado de pecadores, de baixo para cima, e pode ser visto do outro lado, do lado de Deus, de cima para baixo. Fomos educados a ler a crucifixão de Jesus do lado humano, confessando que Jesus morreu por nossa causa, vítima dos nossos pecados. O Papa recomenda que neste ano a vejamos do outro lado, do lado de Deus, reconhecendo o amor que Deus nos tem, maior que os nossos pecados.

O Papa retoma aqui o tema da sua encíclica sobre «o Amor de Deus», «Deus caritas est». No Crucifixo encontramos o Amor de Deus, amor Ágape e amor Eros. Ágape é o amor gratuito, amor de pura generosidade que nada busca para si; Eros é amor paixão, amor de quem procura no outro algo que lhe falta. O amor de Deus é sempre Ágape, mas também se pode dizer Eros na medida em que Deus ama apaixonadamente, como quem não pode passar sem nós, que sente falta de nós, e por isso nos busca, uma certa loucura de amor.

A tradição cristã sempre viu no sangue e água que brotaram do lado trespassado de Jesus na Cruz os sinais da Eucaristia e do Baptismo, sacramentos daquele amor intenso. «Com a água do Baptismo, graças à acção do Espírito Santo, abre-se para nós a intimidade do amor trinitário, sendo exortados a sair de nós próprios e a abrir-nos ao abraço misericordioso do Pai. A Eucaristia atrai-nos para o amor oblativo de Jesus, convidados para a dinâmica da sua doação».

Acerca destes sacramentos a Igreja estabeleceu normas disciplinares precisas que requerem obediência, mas antes delas está o seu mistério profundo e é a consciência dessa «paixão que é indispensável aprofundar e viver. É a chamada mistagogia dos sacramentos.

A Quaresma é um tempo preciso para o desenvolvendo dos laços de intimidade com a Trindade e laços de comunhão afectiva com os outros, nascidos do baptismo, rezando mais e melhor e privando-nos de alguns bens para ajudar.

Também faz bem pensar que o amor do Crucificado ilumina o amor humano e torna-o grande, o amor «ágape», mormente na mãe que vence todos os cálculos do mundo, nos missionários de povos distantes, e mesmo na dedicação constante de muita gente aos doentes e trabalhos paroquiais, gestos tocados de alguma loucura. Na sociedade actual, vem a crescer uma busca excessiva de conforto e de bem estar que faz esmorecer esta sensibilidade de dedicação e de disponibilidade. «A Quaresma será, sobretudo, um impulso a combater qualquer forma de desprezo da vida e da exploração de tantas pessoas».

 

3- Nesta Quaresma, peço aos párocos que coloquem em relevo na igreja um Crucifixo estimado pelo povo, adornem-no de modo conveniente, afectivamente. Os pais façam o mesmo em suas casas.

Haja um esforço de atenção ao fazer o Sinal da Cruz cujas palavras unem o mistério da Cruz à Trindade, tornando assim claro que no amor de Jesus Crucificado se reflecte o amor do Pai e do Espírito santo. Na Missa dominical, depois da comunhão, recitem-se em voz alta os hinos «Divinas mãos e pés, peito rasgado» e «A Vós, correndo vou, braços sagrados» (Ofício das Horas de 7 de Fevereiro). Visitem os Doentes como sinais de Jesus Crucificado, e os ministros extraordinários da Comunhão e os Vicentinos sejam especialmente atentos a esta dimensão do seu trabalho pastoral.

Façam durante a Quaresma, mormente às sextas-feiras e tardes de Domingo no interior das igrejas o exercício da Via-sacra, como um acto de piedade que depressa conduz as almas ao centro da fé católica.

O Contributo penitencial, obrigatório em todas as paróquias, seja entendido nesse espírito de amor à Igreja. As renúncias quaresmais são diferentes do contributo, são fruto de actos pessoais de amor cristão: renúncia a refeições mais ricas, a guloseimas, a divertimentos, a passeios, ao tabaco e ao álcool. Os párocos eduquem os fiéis para o espírito desta dupla partilha de bens, sem medo de escandalizar ou de ser exagerado. Os fiéis – adultos, jovens e crianças – entendem perfeitamente este dinamismo e sentem a sua utilidade pedagógica e ascética. O fruto da renúncia destina-se à Diocese de Malaca, na Ásia, outrora diocese portuguesa.

Proporcionem aos fiéis ocasiões individuais e comunitárias para o sacramento da Reconciliação.

Finalmente, a tempo e horas preparem grupos de fiéis para a celebração da Semana Santa pelo menos numa das paróquias, incluindo o Domingo de Páscoa. Sabendo que a Igreja vem a insistir que a pastoral do Domingo não deve restringir-se à Eucaristia mas encher todo o Domingo, seria muito errado deixar vazio o maior Domingo do ano. Dos muitos actos possíveis (uns pertencentes à piedade popular como visita às famílias, cortejos pascais desde o cruzeiro paroquial para a igreja matriz, e outros à piedade litúrgica como a Oração de Vésperas e visita à fonte baptismal), os párocos escolherão com o Conselho de Pastoral Paroquial o mais oportuno.

O modo como uma comunidade vive a Quaresma e a Páscoa define bem o espírito que a anima.

 

Vila Real, 11 de Fevereiro de 2007

 

* Bispo de Vila Real

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