Segunda-feira, 14 de Outubro de 2024
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O “Negro” foi o último carrasco português

Luís António Alves. É um nome vulgar. Todavia, corresponde, neste caso, a uma pessoa singular que teve uma vida fora da normalidade. Nascido na aldeia de Capeludos, no concelho transmontano de Vila Pouca de Aguiar, teve berço de ouro, foi galardoado e enaltecido como militar, passou pela cadeia por ter cometido crimes, exerceu um cargo oficial sinistro e acabou desprezado e só. No entanto, o seu nome ficou na toponímia aguiarense. Não bem o seu nome de batismo, mas o outro, o que o tornou célebre: o “Negro”

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O “Negro” veio ao mundo em 1806. Foi originário de uma família honrada, muito respeitada em Capeludos, localidade onde nasceu.

“Luís António, filho legítimo de Inácio Alves dos Santos e de Joana Bernarda Pimenta, deste lugar e freguesia de São João Baptista de Capeludos, nasceu, aos sete de Maio de mil oitocentos e seis. Foi baptizado solenemente por mim, Francisco Xavier Sousa Teixeira, pároco desta igreja, na pia baptismal, aos onze do dito mês e ano, com os santos óleos. Foram padrinhos Luís António Mouta e Severina de Freitas, deste lugar de Capeludos, de que fiz este termo que assinei com os padrinhos. Avós paternos – Domingos Alves e Joana Dinis, de São Cosme de Arcossó, comarca de Chaves. Avó materna – Josefa Pimenta, solteira, de Capeludos”. (Certidão de batismo de Luís António, o “Negro”).

Infância feliz, vida tumultuosa

A sua infância foi feliz, mas a sua vida nem tanto. Na idade em que partiu para Lisboa, em 1822, alistando-se na vida militar, rapidamente se notou estar desenquadrado das realidades que se viviam na capital, para mais acamaradando com recrutas pouco atinados. Um dia aconteceu o que parecia impossível e que acabou por ser um ato inevitável: um assassinato, durante um assalto a uma casa de gente rica no Campo Grande.

Com alguns colegas de quadrilha, tornou-se refratário, regressou à província transmontana, vivendo na clandestinidade, como “fora-de-lei”.“Foi preso em Vila Pouca de Aguiar, onde respondeu por dezoito crimes que se lhe atribuíam, mas que ele sempre contestou. Confessou, isso sim, que só matara por duas vezes, mas em legítima defesa”.
(Leite Bastos, em “O último carrasco”, romance histórico e biográfico).

Alistou-se no Regimento de Cavalaria 6. Quando acabou a recruta, viu-se envolvido na revolução do general Silveira, servindo o exército dos realistas.

“Ao voltar à sua aldeia, Capeludos, depressa a deixou não sem luta contra 30 soldados do regimento nº 9 que tinham ordens para o levar, vivo ou morto. Era o dia 23 de Dezembro de 1835. Cercada a sua casa, feriu três sodados e um sargento. Andou fugido pelos montes, sendo de uma vez convidado para uma pescaria por um amigo de seu tio Caetano Pereira. Foi uma emboscada, pois saltaram-lhe ao caminho três homens de arma aperrada, mas Luís Negro conseguiu vencê-los a murro, fugindo de seguida para longe”.
(Leite Bastos, obra atrás citada).

Teve uma vida conturbada, sempre perseguido pelos absolutistas. Misturou-se em “gangs”, permanecendo numa situação de marginalidade, sempre a procurar iludir as autoridades. Até que, um dia, a polícia capturou-o. Foi levado para Chaves.

Ao fim de sete meses a ferros, foi julgado. Foi provado que estava livre das culpas indicadas no processo. Mesmo assim, ficou preso mais dezassete meses, por se ter evadido e tornado refratário, conseguindo, ao fim desse tempo, fugir de novo, tomando a resolução de ir viver para o Brasil. Mas foi traído por um antigo colega de cárcere e teve de dar entrada, de novo, na cadeia flaviense. No julgamento, um episódio agravou a sua já perigosa situação. Sentindo a falsidade das testemunhas e a parcialidade do supremo magistrado que o julgava, perdeu o sangue-frio que sempre demonstrara e atirou o banco em que estivera sentado à cabeça do juiz.

Condenado à morte, evitou a forca

Sentenciado, Luís António Alves foi condenado à morte. E recolheu à cadeia do Limoeiro. No entanto, não foi a forca que lhe causou a morte. Conseguiu evitá-la, mais uma vez de forma inesperada.

“Já conformado com o duro destino, chegou-lhe, em junho de 1845, a ingrata proposta: passar a matar (legalmente) para não ser morto. Ainda terá hesitado, mas a mulher convence-o a trocar o lugar de condenado pelo de executor de alta justiça (N.A. – era assim designado o carrasco real), função maldita e mal vista por todos. Luís Alves aceita, a pena de morte é-lhe comutada e terá de exercer o sombrio mester até ao fim dos seus dias”.

(Maria João Medeiros, em “Almanaque do crime português” – 1921).

Por essa altura, vozes diversas propagavam a necessidade de Portugal terminar com tão bárbaro costume de fazer morrer no cadafalso, à vista de todos, numa praça da cidade, os criminosos e fora-de-lei. Em 1867, a pena de morte por crimes comuns foi abolida, quando as execuções estavam a ser cada vez mais raras. Abolido foi, também, o salário anual do carrasco (49$200 réis).

Conforme refere Maria João Medeiros (cf. obra atrás citada), “a ironia é que se extinguiu o salário, mas não o ofício”. Condenado a ser verdugo até ao fim dos seus dias, por força da disposição legal que lhe tinha comutado a pena de morte, Luís Alves passou a ter dificuldades de sobrevivência. Tornou-se artífice e instalou-se num baixo de um pátio que passou a ser conhecido como “Pátio do Carrasco”, entrando definitivamente com esse nome na toponímia lisboeta, ainda hoje existindo tal lugar e tal designação.

Uma pose austera e um capuz preto

A razão porque Luís António Alves ficou conhecido por “O Negro” teve a ver com a sua pose austera, caminhando devagar e firme em direção ao cadafalso onde os criminosos eram sentenciados.

O carrasco vestia de preto, totalmente. Um capuz todo negro tapava-lhe a cabeça na totalidade. Apenas dois orifícios permitiam que ele visse o que o rodeava e o pescoço do condenado. Altivo, subia as escadas de madeira. Os que iam assistir à morte por enforcamento ou por lâmina afiada começavam por afastar-se à sua passagem, reassumindo o seu lugar, entre o curioso e o receoso. “O Negro” era fantasmagórico. Tenebroso.


Ao que consta, Luís António Alves nunca terá executado ninguém. É o que refere Maria João Medeiros, no seu “Almanaque”. E, numa referência de Camilo Castelo Branco, em “Noites de insónia”, em todo o tempo em que vigorou a pena de morte “apenas foi encarregado de promover uma execução, em Tavira, em 1845.

No entanto, terá oferecido a outrem o dinheiro de que dispunha para que fosse esta pessoa (ajudante no ofício) a ocupar o seu lugar”.
Não admira. Com o algoz de cabeça tapada e sem falar, quem iria descobrir a falcatrua?

O Bairro do Quarto Negro, em Vila Pouca

Repudiado pela família e sem amigos, refugiou-se num bairro velho e antigo, em Vila Pouca de Aguiar, exercendo mister de sapateiro, vivendo só, ao lado do caminho real que descia para Cidadelha, um subúrbio da vila. Terá alugado aí um quarto onde viveu.

Era o quarto do Negro, uma designação que entrou na história do verdugo e da própria localidade. O “Quarto Negro” (em rigor, deveria chamar-se “Quarto do Negro”) ganhou espaço e moradores até aos dias de hoje, mantendo o designativo. Tornou-se num bairro que foi crescendo à medida que a memória do carrasco se foi esbatendo. Não é uma figura de que os aguiarenses se orgulhem.

Mesmo em Capeludos, para além de já terem ouvido falar do Negro, desconhece-se totalmente qual a casa em que nasceu ou qual o sítio em que foi sepultado.

Valente militar

Como militar foi considerado um homem valente. Esteve em várias ações ao serviço do exército português, com evidência para as refregas de Almoster e Asseiceira. Fez parte da Legião Estrangeira e foram-lhe atribuídas três condecorações. Tudo isto enquanto jovem, já que se alistou com 16 anos de idade, antes de se tornar refratário e de ter transformado a sua vida num inferno conturbado que o fez morrer só, esquecido, triste, pobre e doente de epilepsia e asma, em 18 de agosto de 1873.

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