Na campanha sobre o referendo do próximo Domingo, falou-se algumas vezes da Igreja, houve quem invocasse a condição de católico para defender posições, e buscou- -se o apoio num ou outro padre que em artigos de jornal pareciam confusos. Isto convida a reflectir sobre o estatuto do católico.
O múnus de ensinar é referido no Concílio Vaticano II como o primeiro dever do bispo, antes do múnus de santificar e de governar. O título de Mestre foi aquele que Jesus reivindicou explicitamente para Si, e morreu, não pelo pão que distribuiu nem pela oração que fez, mas pelo que ensinou. O Concílio ensina que «os bispos devem ser respeitados por todos os fiéis como testemunhas da verdade divina e católica» e «os fiéis devem ater-se ao seu bispo com religioso obséquio do espírito» (LG 25). No desempenho da sua obrigação de anunciar a mensagem do Evangelho, o bispo dirige-se aos cristãos e aos descrentes: aos cristãos fala com autoridade, fazendo a didaskália ou educação da inteligência e da vontade no interior da fé e espera deles, assentimento religioso; aos descrentes proclama o kerigma, a novidade do Evangelho, e a mensagem vale pela força dos argumentos apresentados num clima de laicidade. Nas reflexões aqui apresentadas uniram-se as duas perspectivas, a da fé e a da razão, tendo em conta a hipotética variedade de leitores
Ao lado dos bispos e para os auxiliar, trabalham os teólogos, os filósofos e as equipas de cientistas, mas o seu ensino não é da mesma ordem do ensino dos bispos: o teólogo, o filósofo e o cientista podem causar respeito pela profundidade das suas pesquisas e o valor das suas análises, mas não dispõem de poder de autoridade para impor o seu ensino aos subordinados. A força do magistério dos bispos, mesmo quando apresentam razões no seu ensino, nasce do mistério da presença do Espírito e a obediência que pedem é mais que obediência às suas razões. Para um católico consciente, devia bastar a orientação do magistério dos pastores da Igreja. A vida intra uterina, por exemplo, não foi durante séculos conhecida em pormenor como está a ser actualmente, mas a Igreja sempre ensinou que «ela é sagrada».
O mundo inverte o ministério da Igreja: aceita que ela organize «obras de assistência social», aceita que promova o «culto», mas suporta mal que «ensine». A tarefa de ensinar foi sempre o motivo da perseguição da Igreja e de atrito com os Estados. Basta recordar em tempos recentes a perseguição à Rádio Renascença e outros episódios com jornais e escolas. Ainda agora isso veio ao de cima nesta campanha do aborto «que a Igreja não se meta nisto» e, em notícias de jornais, de rádios e de televisões, coleccionaram-se ditos de católicos em dissidência dos bispos. No arsenal dialéctico desses católicos é possível encontrar algumas coordenadas comuns: dizem-se católicos mas «abertos ao mundo» e «não conservadores», cidadãos «comprometidos» em determinadas causas sociais, «militantes e simpatizantes de certos partidos políticos» e «inimigos de ordenamentos jurídicos que lhes pareçam ofender determinadas classes». O que julgam essencial é a «abertura», o «compromisso pessoal», a opção partidária, a militância pessoal, a «defesa da classe», e baloiçam entre a fidelidade às orientações da Igreja e a fidelidade às suas opções ideológicas e compromissos políticos. O problema desses católicos tem a ver, no plano intelectual, com o diálogo da fé com a cultura, um desafio posto aos primeiros cristãos em relação à cultura judaica, depois à cultura grega, à política romana, ao iluminismo, às lutas sociais do século XIX, às ideologias do século XX, às descobertas científicas e possibilidades da técnica. Isso requer uma sólida formação da inteligência cristã em temas como fé e compromisso político, Igreja e sociedade laica, moral e técnica, uma série de questões fundamentais de Teologia e de Filosofia. Que «mundo» é esse ao qual a Igreja se deve abrir? Que «abertura» é essa e quem mede essa abertura? Que «diálogo» é esse que os leva a afastarem-se dos pastores? Seja dito de passagem que também foi notória a deficiência de disciplina mental em muitos profissionais: juristas a misturarem jurisprudência no julgamento de passos errados com cedência na formulação dos direitos básicos e a não fazerem a harmonia dos códigos, cidadãos a confundirem formulação de princípios com desabafos de fraquezas pessoais, médicos a trocarem o seu compromisso com a vida pela tarefa de assistentes sociais, confusão do que é vida humana com conhecimento total dos seus mecanismos biológicos, profissionais de saúde a defenderem o recurso à morte directa como meio de promoverem a saúde, biólogos a invocarem «factos» sociais para imporem leis biológicas!
Da desorientação desses cristãos falou a «Congregação da Doutrina da fé» em 2002 numa «Nota doutrinária» onde se diz que «recentemente no interior de algumas associações de inspiração católica surgiram orientações de apoio a forças e movimentos políticos que, em questões éticas fundamentais, exprimiram posições contrárias ao ensino moral e social da Igreja. Analogamente, nalguns países e por ocasião de escolhas políticas, algumas revistas e jornais católicos orientaram os leitores de maneira ambígua e incoerente, enganando-os sobre o sentido da autonomia dos católicos em política e sem terem em consideração os princípios que devem ser a sua base referencial». São explicitamente referidas nesse documento áreas como «o aborto, a eutanásia, o casamento monogâmico ente pessoas de sexo diferente, a garantia de educação dos pais para os seus filhos, a libertação das modernas formas de escravidão como seja a droga e a exploração da prostituição, a justiça e solidariedade social»
A defesa da vida humana intra uterina é uma constante na história da Igreja, a ponto de, nos primeiros séculos, os cristãos serem conhecidos entre os pagãos como aqueles que «não partilham o leito conjugal com terceiros nem matam os filhos». No nosso tempo, a liberdade sexual e a decadência de costumes em países tecnicamente evoluídos geraram situações complexas, levando os políticos a tentarem impor alguma ordem introduzindo nos diplomas jurídicos o direito de matar alguns, oficializando assim uma «cultura da morte». Essa mentalidade chega a Portugal em nome da saúde pública e de um certo feminismo, expressa na pergunta que é feita aos eleitores. Porque cada cidadão se transforma num legislador, responsável pela futura lei e por tudo o que ela vier a permitir ou proibir, deve formar a sua consciência, e os Bispos, no «exercício do seu magistério comum e pela obrigação que sobre eles impende de educarem a consciência moral», demos a conhecer há meses a posição da Igreja, uma posição anterior e acima de qualquer campanha política. É o nosso dever e é obrigação deles.
A união dos fiéis aos pastores da Igreja ou o sentir com a Igreja foi sempre o critério fundamental da vida de fé de um católico (LG 14), mesmo quando esse católico é capaz de analisar pessoalmente o tecido doutrinário das questões. Hoje, por causa da complexidade dos problemas que diariamente se colocam à vida moral, muitas vezes apresentados como hidra de sete cabeças vestidas de anjos de luz, essa união dos fiéis aos pastores da Igreja torna-se especialmente necessária. A pergunta do referendo é exemplar dessa confusão, solicitando, em nome da compaixão pela mulher que precisa de ajuda, a institucionalização do direito de se matar o filho nas primeiras dez semanas. É esse direito que nunca pode ser concedido como instrumento de profilaxia social. Pertence aos políticos e os juristas tentar outros caminhos, e não ao eleitor.
Oxalá os eleitores se apercebam a tempo e horas da profundidade do problema e os católicos compreendam o que significa viver «em união com o Papa e os seus Bispos».
D. Joaquim Gonçalves * Bispo de Vila Real