Sábado, 7 de Dezembro de 2024
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Papa no Médio Oriente: Questões de fronteira

1 – Amanhã, dia 15, termina a viagem pastoral de Bento XVI à Jordânia, a Israel e ao Povo palestiniano; no Domingo, dois acontecimentos se destacam: a celebração dos 50 anos do Monumento Nacional a Cristo Rei, com a presença de um Legado Pontifício e de todo o Episcopado Português, e a conclusão da Semana da Vida.

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Se usarmos a linguagem teológica, diremos que os três factos correspondem a outras tantas preocupações da Igreja: a prática do Diálogo Inter-religioso e suas dificuldades; a afirmação de Cristo e dos valores cristãos numa época marcada pela laicidade dos Estados; e a defesa da Vida perante a tecnologia e a ciência absolutizadas.

Religiosamente, tudo isto parece um cabaz de Maio com alguma fruta da época e muita esperança de colheita futura: os três acontecimentos são fruto visível de muito trabalho anterior, mas são sobretudo semente de esperança de novos frutos no futuro. Nenhum deles é estático, tudo vai a caminho.

2 – Três questões de fronteira das religiões entre si e entre elas e o mundo. Uma palavra sobre cada um destes factos, a começar pela viagem pastoral do Papa.

A viagem do Papa colocou frente a frente o exercício da mundividência das três grandes religiões monoteístas – judaismo, cristianismo e islamismo. Todas se dizem abraâmicas, isto é, herdeiras da promessa feita por Deus a Abraão de fazer dele «o pai dos crentes e com descendentes mais numerosos que as estrelas do céu e as areias das praias do mar»: os judeus afirmam que essa promessa se realizou neles por meio de Isaac, filho de Abraão e de Sara, e continuada em Jacob ou Israel e no rei David; os cristãos tomam-se como a concretização dessa promessa por meio de Jesus Cristo que, sendo da descendência de David, trouxe uma mensagem divina que ultrapassa fronteiras nacionais; os muçulmanos, que apareceram 600 anos depois de Jesus, têm-se a si mesmos como os realizadores da promessa a Abraão através de Ismael, filho de Agar, uma escrava de Abraão, de quem derivam os nomes de «ismaelitas» e «agarenos»

A delicadeza da questão é que cada uma delas toma-se como autêntica e exclusiva, havendo sempre a tentação da perseguição aos outros. Isso ainda hoje é claro entre judeus e muçulmanos, e já o foi entre cada um deles e os cristãos. Entre os cristãos, é essa ainda a perspectiva de Mons. Lefèbvre e seus seguidores, defensores de uma pastoral construída a partir da «verdade objectiva»: saibam ou não saibam, Jesus Cristo é a verdade e, por isso, a Igreja não deve «dialogar» com outras religiões, que são necessariamente erradas, mas afirmar-se diante delas como a «verdade» perante o «erro». Ora o Concílio, acrescentou à verdade objectiva da fé cristã a dimensão subjectiva e interior da pessoa, mandando aos cristãos que, no contacto com crentes e descrentes, tenham em conta essa dimensão subjectiva, as tradições e convicções profundas de cada um e pratiquem coerentemente a sua fé cristã e a caridade, sem arrogância nem discussões inúteis, deixando a todos a mesma liberdade. Nesse convívio pacífico pode surgir o diálogo, e, se forem interrogados, apresentarão as razões da sua fé, sem agressão de linguagem nem de atitudes. Este é o único comportamento humano adulto, equidistante da agressão e do desprezo, e que rejeita o espírito de conquista e a pressão psicológica ou social.

O outro aspecto delicado das três religiões é que não se limitam a actos de culto, têm uma dimensão social e exercem influência na sociedade civil. No Judaísmo clássico essa aproximação da sociedade quase se confunde com o nacionalismo judaico: as datas religiosas são datas da história de Israel, a própria Páscoa é a festa de um facto social e político – a libertação do Egipto. Modernamente, vão surgindo entre os judeus grupos que fazem a separação e caem até no laicismo e ateísmo prático, vivendo sem qualquer dimensão religiosa, reduzindo o judaismo a mera cultura. O Islamismo leva ao máximo aquela união fazendo dos líderes religiosos líderes políticos, ordenando a justiça segundo regras religiosas e sacralizando toda a vida social e política e a terra onde vivem que consideram sagrada, havendo grupos que propõem inclusive o terrorismo como meio de defesa e de conquista. A Igreja, que já viveu esquema semelhante em séculos passados, vem a tentar um comportamento novo: ajudar os cristãos a viverem os valores religiosos na sociedade civil e em regime de laicidade do Estado. Isto é, o Estado como estrutura política de todos, não propõe valores religiosos de nenhuma religião, mesmo que ela seja maioritária, respeita-as a todas, podendo, por amor ao bem comum e sem prejudicar as outras, firmar compromissos com alguma delas; por sua vez, as religiões não tentarão impor valores religiosos nas estruturas do Estado, mas somente os valores naturais, humanos, de ética fundamental.

Estas duas atitudes (a prática e convívio religioso dos cidadãos seguido de diálogo pacífico entre eles e a existência de uma sociedade civil com valores religiosos diante de um Estado laico) são uma conquista lenta da cultura e da civilização. Os «povos religiosos» têm medo que o Estado laico se transforme num Estado ateu e anti-religioso e acabe por não viver sequer os tais valores fundamentais comuns para a sociedade civil. Assiste-lhes alguma razão. E é este o maior desafio lançado às sociedades contemporâneas, aquilo que já aqui defini como o excesso de religião, de um lado, sacralizando tudo, e o excesso de laicismo do outro, banalizando a sociedade.

3 – Na sua viagem, o Papa praticou aquele diálogo religioso e cultural, visitando respeitosamente uma mesquita recém-construída na Jordânia e reunindo-se depois numa assembleia única com bispos católicos, com cristãos não católicos e com responsáveis muçulmanos. O Príncipe herdeiro da Jordânia saudou o Papa com respeito e verdade, reconheceu a sua fama de grande teólogo, lembrou o episódio de Ratisbona, aceitando, como mero acto académico, a citação de um antigo imperador bizantino contra Maomé mas que rejeitou em si mesma, e proclamou a estima dos muçulmanos pelo Profeta. Elogiou a sensatez do Papa ao permitir a missa em latim para um grupo de católicos e sublinhou o esforço de Bento XVI em colocar «a consciência da pessoa acima das estruturas humanas».

Um discurso objectivo, cheio de elegância e de verdade, a que o Papa respondeu de modo semelhante, dizendo que «a fé dos cidadãos não deve ser instrumentalizada por ideologias ou militâncias políticas», pedindo aos cristãos árabes que «sejam firmes na sua fé, apesar das dificuldades», e mais tarde, pediu aos políticos locais «que respeitem e promovam a dignidade da mulher». O Papa sublinha assim o direito e dever dos crentes à prática religiosa e, para a sociedade civil, sublinha um direito humano de ética fundamental, sem conotação religiosa. Aí está o exemplo do desafio lançado em Ratisbona por Bento XVI: o diálogo nascido da razão humana no interior da fé e não somente dos princípios absolutizados

No diálogo com judeus e muçulmanos veio ao de cima outra dificuldade: o sentimento de «vingança» próprio dessas culturas que identificam com honradez, e a quase ausência do perdão, alma do cristianismo.

4 – Na festa dos 50 anos do Monumento a Cristo Rei podemos encontrar o exemplo da outra fronteira entre a vida religiosa no interior da sociedade civil e o Estado laico, uma situação diferente daquela que se verificou na inauguração do Monumento em que o Estado teve dificuldade em situar-se perante o acontecimento, hesitando entre assenhorear-se do facto e colocar-se sobranceiramente à margem.

A Semana da Vida coloca em relevo outro sector de fronteira: como salvar e promover a dignidade da vida humana numa sociedade orgulhosa das suas conquistas científicas e técnicas, a invocar a ambição de curar doenças futuras à custa dos embriões humanos da geração actual, e perante os Estados cada vez mais laicos e permissivos.

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