Quinta-feira, 5 de Dezembro de 2024
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Sacrifício implica sangue e destruição?

1 – Quem visita os santuários pagãos como o de Panóias, perto de Vila Real, observa nitidamente que o derramamento de «sangue» e a destruição da vítima oferecida em sacrifício fazem parte da religião pagã. E o culto de Moloch dos antigos povos fenícios incluía mesmo sacrifícios de crianças. O culto cristão faz memória da morte de Jesus. O que significa isto?

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O «Ano Sacerdotal» é uma boa ocasião para reflectir sobre isso. Na verdade, o Ano Sacerdotal não é propriamente um ano dedicado aos Padres e aos Bispos, mas um convite dirigido a toda a Igreja para estudar e amar o mistério e ministério do sacerdócio cristão, inseparável do sacrifício da missa. Na semana passada deixaram-se aqui umas notas bíblicas sobre o Sacerdócio judaico ou levítico, em confronto com o Sacerdócio de Jesus Cristo, notas que hoje se prolongam.

 

Sacrifício não inclui violência

 

2 –Sacerdócio e sacrifício são realidades que se exigem mutuamente, não havendo sacerdote sem oferta sacrificial, nem oferta sacrificial sem sacerdote ofertante.

O «sacrifício» é o acto sagrado da oferta oficial de algo a Deus. Na história das religiões pagãs, as coisas oferecidas (produtos da terra, azeite, animais e até pessoas) eram frequentemente destruídas e até queimadas, a fim de exprimir o reconhecimento de Deus como Senhor absoluto sobre elas e sobre a vida do homem. Eram as «vítimas». Deste modo, parece que o «sagrado» inclui por sua natureza a violência e a destruição (R.Girardi). E ainda hoje, no entendimento vulgar, sacrificar é sinónimo de sofrimento, inclusive o derramamento de sangue. Entre alguns os povos antigos, as lutas militares incluíam a oferta aos deuses de vítimas humanas, e, para não causar baixas no exército próprio, essas vítimas eram recrutadas entre os vencidos. Daí o nome de «hóstia» (retirado da «hoste», do inimigo) dado a essa vítima extraída do exército adversário.

A pergunta que se faz é esta: na Bíblia, o «Sacrifício» exige a destruição da oferta? E é permitido imolar a pessoa humana?

A prática dos sacrifícios bíblicos incluía coisas (incenso, azeite, pão, vinho e animais), mas não pessoas. O Antigo Testamento lembra o caso de Abraão que, influenciado pelo ambiente dos povos vizinhos, pensou imolar o filho Isac, mas um anjo suspendeu o cutelo no momento em que Abraão o ia vibrar mortalmente sobre o filho Isac. Casos isolados como o de Jefté, um general que num excesso de fervor vitimou a própria filha, acontecem numa altura de grande confusão doutrinária e política dos Hebreus, o chamado tempo dos juízes, anterior à instituição da Realeza.

As coisas oferecidas eram retiradas da criação, incluindo animais, depois imolados, queimados ou dados em alimento aos pobres e parte aos sacerdotes. Houve sempre o perigo se atribuir o valor do sacrifício à quantidade das coisas oferecidas, como repetidamente advertiram os profetas, deixando de lado a vida das pessoas. Também era a violência que dava valor ao sacrifício. Mas, pergunta-se, a «violência» faz parte do culto? As coisas têm de ser «destruídas», tem de haver «vitimação» como exigência do acto de adoração? Parece uma subtileza, mas é um núcleo essencial. A resposta é não.

A própria palavra «sacrificar» directamente significa «fazer uma coisa sagrada», dando-a a Deus, independentemente do sofrimento ou da sua destruição da coisa oferecida. É certo que, dada a nossa natureza, egoísta e comodista, a dádiva de algo valioso implica quase sempre o sofrimento, não daquilo que se oferece, mas do ofertante, mas esse aspecto não constitui o elemento essencial do sacrifício. A marca do valor do «sacrifício» como oferta sagrada radica no amor do ofertante, e o sofrimento do ofertante é, quando muito, um sinal externo do amor do ofertante (Albert Vanhoye).

 

Sacrifício de Jesus

 

3 –No caso de Jesus, Ele nunca falou do «sacrifício» da sua vida nem de ser «sacerdote». Falou muitas vezes da «oferecer» a sua vida, de «perder a vida» por amor dos outros, de «dar a vida» e recuperá-la. Essas expressões devem entender-se como sinal de «fazer até ao fim a vontade do Pai», mas não da busca da morte. O que Jesus «oferece» é a sua vida desde o presépio, a sintonia com a vontade do Pai no esforço de encaminhamento do mundo, o desgaste do seu corpo na proclamação do amor do Pai ao mundo, não se restringindo à hora da morte, e até evitando sempre a perseguição organizada pelo Sinédrio. A aceitação da morte por parte de Jesus tem de ser entendida como a consequência de manter até ao fim a fidelidade a tudo quanto Ele havia ensinado sobre o amor do Pai ao mundo e o seu próprio amor. De resto, o lema do Ano Sacerdotal é exactamente «fidelidade de Cristo, fidelidade do sacerdote». É esse amor ao Pai e ao mundo que enche a vida de Jesus, a verdade da sua vida e mensagem.

Não encontro melhor comparação para exprimir o sentido do dinamismo interno de Jesus do que o cacho de uvas e a vindima: se a videira pudesse falar, diria que o seu sonho é ir até à mesa do dono para o encher de alegria. E se para isso tem de ser cortada na vindima e esmagada no lagar, pois que venha esse martírio, mas o que enche de festa o cacho da uva é o amor! Quando se olha para Jesus Crucificado, o vinho ovo de que o Pai é o vinhateiro, é indispensável olhá-lo de cima para baixo, a partir da fonte. Olhado de baixo para cima, do lado do mundo, do exterior da história, só se vê a agressão do Sinédrio mancomunado com o poder romano, mas essa destruição vem de fora e não é parte essencial da oferta de Jesus. A violência feita na tentativa de impedir a proclamação do amor e da doutrina é secundário e só vai colocar em relevo o amor do ofertante. O mesmo testemunha Paulo de Tarso e os outros cristãos cujo objectivo não era serem mortos, mas falarem de Jesus. O martírio deles não era o do sangue, mas o de serem «testemunhas» amor no modo de viver.

Isto é fundamental na compreensão do cristianismo: ele não é uma religião da violência do sagrado, nem exige sangue, como temia, há anos, o Eduardo Prado Coelho nas conversas pouco conversadas com o cardeal Policarpo.

 

Sacrifício e Eucaristia

 

4 – Se à Eucaristia damos o nome e o sentido de Sacrifício, é preciso ter sempre presente a especificidade do sentido cristão dessa palavra. Ao participar no «sacrifício» da Missa e quando recebemos a Eucaristia, não vamos à procura de uma violência sagrada, nem de Jesus nem nossa, mas da inserção da nossa vida na onda de um amor total. Quando os noivos cristãos recebem a Comunhão inserem-se nessa onda de amor de Cristo para a vivência de um amor total; o mesmo acontece aos jovens que enveredam pela ordenação de padres, assumindo o compromisso de viver um amor que vai até à plenitude das suas forças. A todos os seguidores de Jesus Cristo, na vida quotidiana ou em horas heróicas, pede-se que amem como Ele amou, até à plenitude, na defesa da vida, da verdade e da justiça, ultrapassando a hipótese da morte imposta do exterior por alguém. O «sacrifício» historio de Jesus não se restringiu ao que se passou na sexta feita santa, e ainda hoje Igreja celebra oficialmente o «sacrifício» de Jesus no Domingo e não na sexta-feira.

Qual é, afinal, a «vítima» que o cristão oferece quando toma parte no sacrifício cristão? – De si mesmo, é a sua vida pessoal em união com Cristo, como diz expressamente Paulo na carta aos Romanos: «peço-vos, irmãos, que vos ofereçais a vós mesmos como sacrifício vivo, santo, agradável a Deus. Tal é o culto que Lhe deveis prestar» ( Rom 12, 1-2). Este é um texto fundamental, na carta fundamental de Paulo, escrita por um homem que conhecia bem o culto judaico no Templo de Jerusalém. Nesse mesmo sentido devem ser lidas outras passagens das cartas aos Filipenses, a Timóteo e a Tito, adiante citadas. É esse o «novo culto», o domínio de um corpo que se vai «queimando» em novo incenso no amor aos outros, no matrimónio, no trabalho, no serviço público. Paulo de Tarso que bem conhecia a mística do Templo de Jerusalém, diz que o novo templo é o corpo humano, mesmo no casamento, sucessor do de Jerusalém, é a nova «tenda» que precedeu o templo Coríntios (2Cor 5). O sacerdote, homem público, renova de modo sacramental a oferta de Cristo em amor do Pai e dos homens. O culto cristão não se movimenta entre mortos e a saudade.

Ao publicar estas notas, o meu objectivo é purificar a linguagem e os conceitos da fé, e auxiliar a ler a Bíblia, como se fez no Ano Paulino. Para isso, deixam-se aqui algumas referências bíblicas para o leitor se exercitar na leitura do tema proposto e dar de comer à cabeça: Hebr 7;10; Rom 12, 1-2; Filip 4,18; 2Tim 4,6; I Cor 6,19-20

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