Domingo, 8 de Dezembro de 2024
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Ser cristão no tempo dos líquidos Ou a necessidade de pensar

1– É já na próxima terça-feira, dia onze, que o Papa inicia a sua Visita a Portugal, com celebrações em Fátima, em Lisboa e no Porto. A Visita e o programa apresentado, com actos públicos fora do santuário, têm merecido, de uns, cuidada preparação e, de outros, hostilidade. Não vamos entrar em polémica inútil, mas reflectir sobre o caso.

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A missão da Igreja não se esgota no culto, tem uma relação estreita com o mundo. De certo modo, a Igreja só existe por causa do mundo. É isso que o Concílio exprimiu muito bem por duas Constituições, uma «sobre a Liturgia» e outra «sobre o Mundo contemporâneo». A da liturgia foi a primeira a ser publicada, e a da presença no mundo a última: a Igreja é um povo que reza e é igualmente um povo enviado ao mundo. Se a Igreja olha para dentro de si mesma é para se robustecer a fim de melhor servir, e se é enviada ao mundo é para ajudar o mundo na sua vocação.

2 – A necessidade de salvar o mundo supõe que há nele alguma doença ou desvio, e a doença ou desvio é fundamentalmente a auto-suficiência, a perda de horizontes. O cristão é enviado ao mundo para estabelecer a relação do mundo com Deus, sem que isso signifique fuga do mundo, antes reforce o empenho no mundo concreto.

E é exactamente o modo como se entende esta relação Igreja-mundo que origina a crise actual. Em alguns lugares, o mundo, laicizado, rejeita o contributo da Igreja como supérfluo e até nocivo; noutros, a Igreja tanto se quis aproximar do mundo que se deixou envenenar por ele.

Como conseguir que a Igreja seja enviada ao mundo sem naufragar, e que o mundo viva a sua autonomia que não seja auto-suficiência? Como deve a Igreja agir sem se destruir a si mesma, e como pode o mundo aceitar alguma coisa da Igreja sem perder a sua autonomia?

3 – A tarefa do Papa Bento XVI anda nesse quadrante. É uma tarefa delicada, algo que assusta o mundo, porque, numa cultura do imediato e do útil, a mensagem do Papa corre o perigo de parecer aos cidadãos algo distante das contas diárias. Ora o Papa, este ou outro, é, antes de mais, mensageiro de uma maneira de entender o mundo, dirige-se à cabeça, por mais teórico que isso pareça. E o mundo não gosta de pensar.

Alguns sociólogos, como Z. Bauman de origem polaca, definem a mentalidade instalada no Ocidente como a cultura «dos líquidos», e falam da «personalidade líquida», da «vida líquida», do «amor líquido», do «casamento líquido» e até da «morte líquida» e do «medo líquido» como estados de alma em contínua mudança, algo que «se escoa» como água na areia, inconsistente. Em vez do termo «líquidos» há quem vá mais longe e recorra à imagem da «vaporização» e do «estado gasoso» para dizer o mesmo: uma cultura «vaporosa», inimiga do certo e definido, adepta unicamente de gestos amaneirados, simpatias epidérmicas, palavras amáveis, discursos brilhantes.

Com essa linguagem querem sublinhar que não há princípios absolutos e se rejeita tudo quanto seja definitivo, sólido, consistente, duradouro. Essa cultura adora a técnica e a sua relatividade, e reflecte nos comportamentos e na orientação escolar, na política e na organização da vida. Uma tal mentalidade não se questiona nem tem resposta para os problemas fundamentais como a morte e o sentido da vida, fixa-se nos sentimentos de conforto imediato. Daí nasce o império da tecnologia, o erotismo de múltiplos rostos, a anarquia dos sistemas éticos. Na ausência de princípios fundamentais, crescem a areia do relativismo e o fumo do subjectivismo, e multiplicam-se os contrastes: fé e campanhas de ateísmo; superstição e terrorismo religiosos; paixão política até á cegueira e cidadãos desinteressados da vida política; campanhas por melhores condições de saúde ao lado da matança organizada do aborto de modo que em cada hora um homem mata outro homem; erotismo desenfreado a fuga ao casamento; esbanjamento de bens e pobreza extrema dentro do mesmo país.

O mundo trocou as estruturas de reflexão por cursos feitos à base de informações desconexas colhidas na Internet; abandonou o eixo da cultura clássica e da dimensão religiosa para ser livre e progressista, e debate-se agora com um mundo sem eixo, deprimido e «desencantado». Trocou os «sólidos» pelos «líquidos» e, afinal, ainda se mantém de pé pelo apoio dos «sólidos» que rejeitou e que se manifestam na solidariedade dos povos e na entreajuda local.

4 – É indispensável que nos habituemos a «pensar». O Papa aí está como o homem que ajuda a pensar. Nas suas viagens pela Europa (viagens que tem privilegiado neste ano) insiste continuamente na urgência de recuperar as raízes da civilização que são, basicamente, a fé e da razão: o Ocidente absolutizou a razão considerando a fé como um estádio inferior, como anti razão e desnecessária; do lado oposto, os «povos religiosos», nomeadamente o Islamismo, absolutizaram a fé retirando-lhe a componente racional; o Ocidente olha-os como fanáticos, e eles olham para o Ocidente como «a terra dos novos pagãos»: sem fé, sem Deus, sem moral, sem casamento, sem família, sem filhos, sem estima pelos velhos, idólatras da técnica. De um lado, racionalismo a mais; do outro racionalismo a menos. O Cristianismo utiliza ao mesmo tempo a fé e a razão, pratica o diálogo das duas, mesmo dentro no interior da fé. Foi isso que Bento XVI lembrou no discurso de Ratisbona na Alemanha onde falou indirectamente dos perigos de um Islamismo sem espírito crítico, e como lembraria na Universidade «La Sapienza», em Roma, acerca dos perigos de um racionalismo sem fé. Uma fé sem razão gera o fanatismo, uma razão sem fé gera a descrença. A técnica absolutizada é uma forma utilitária do racionalismo e leva à descrença.

Felizes daqueles que forem capazes de escutar o Papa e de o seguir. É o sucessor daquele que foi chamado «pedra».

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