Quinta-feira, 12 de Dezembro de 2024
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Transplantes de órgãos e Vida

1 – Participei em Fátima na Semana da Pastoral da Saúde que decorreu de 30 de Novembro ao dia 3 de Dezembro. Era já a XXII realização e teve como tema «Os transplantes de órgãos: doação para a vida». A organização pertenceu à «Comissão Nacional da Pastoral da Saúde», um serviço da Igreja integrado na «Comissão Episcopal Sócio Caritativa», a qual agregou a si a colaboração de vários organismos oficiais, nomeadamente a ASST (Autoridade para os Serviços de Sangue e da Transplantação). Por tudo isto, a sessão de encerramento teve a presença da Ministra da Saúde e de D. Carlos Azevedo, Presidente daquela Comissão Episcopal.

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Foi longo o caminho percorrido entre nós até chegar ao estado actual do serviço do sangue e dos transplantes. Deixo, entretanto, a afirmação de síntese de que o sangue humano foi entre nós durante anos artigo «negociado» e, para que ao transplante de órgãos humanos não aconteça o mesmo, o Estado é, entre nós, a única autoridade que dirige o sector do sangue e dos transplantes. Há brigadas oficiais que se deslocam pelo país para a recolha de sangue que depois o tratará e distribuirá pelos centros hospitalares, e há também equipas oficiais fixas nos maiores centros hospitalares encarregadas da recolha de órgãos e sua distribuição criteriosa e oportuna pelos doentes respeitando a prioridade. Essa «prioridade» não significa «estar na lista em primeiro lugar», mas que o doente eleito deve ser aquele cujas características melhor se adaptem às características do órgão disponível. Eu próprio esperei quase quarenta dias pelo aparecimento de um coração compatível e vi doentes que vieram depois de mim e passarem à minha frente porque os corações entretanto aparecidos se enquadravam melhor com esses doentes. É a chamada «alocação» ou distribuição dos órgãos.

 

2 – Acerca da pesquisa de órgãos humanos para o transplante, praticamente todos os países, incluindo a China, assinaram a «declaração de Istambul» que proíbe o comércio de órgãos humanos, mas na prática há alguns Estados em que é o próprio Governo a «comprar» os órgãos humanos dos respectivos cidadãos (dizem «gratificar» o dador) para que esses órgãos sejam utilizados no tratamento dos cidadãos, impedindo assim que os pobres os vendam a estrangeiros. É uma situação delicada, que salva o que é possível no meio de gravíssimas carências sociais. Mas há países, mormente na América do Sul, onde o negócio de órgãos humanos é mais escabroso que o da droga: pais que, por graves dificuldades económicas, vendem um dos seus próprios rins e parte do fígado para alimentarem os filhos, e cidadãos individuais assaltados e até mortos por bandos para deles extraírem órgãos humanos para serem vendidos a terceiros. Nos países ditos civilizados, unicamente mais ricas e tecnicamente mais capazes, os cidadãos mais poderosos organizam «turismo de saúde» para determinados países para aí efectuarem cirurgias de órgãos «comprados

Há ainda outra série de problemas: estabelecer critérios rigorosos para determinar a morte a fim de se poder moralmente proceder à recolha de órgãos válidos, fazer a sua distribuição de modo justo e equitativo sem favorecimento de qualquer espécie, educar os cidadãos para a doação de órgãos. Há aspectos técnicos que são diferentes de país para país, por exemplo, a hora da recolha do órgão de um cadáver: entre nós, faz–se a extracção logo depois da morte cerebral quando o músculo cardíaco ainda bate, como acontece noutros animais. Mas há outros países onde se espera que o coração pare, portanto mais tarde. A respeito da morte, referiram-se casos ultimamente surpreendentes como o homem que «acordou» após trinta anos vinte anos em estado de coma, e uma mulher grávida de vários meses e cerebralmente morta que levou a gravidez até se poder extrair o filho em condições de viver. O primeiro nunca foi dado como cerebralmente morto, e o segundo é um acto biológico que se pode manter durante algum tempo accionando os mecanismos respectivos. É sabido que as unhas continuam a crescer num corpo morto.

Também o estatuto do «anonimato» do dador é algo variável: entre nós mantém-se o anonimato da pessoa dadora e da terra de origem, informando somente da idade e do sexo; noutros países, a pretexto de criar laços de solidariedade entre os vivos e de facilitar a doação, revela-se o dador. Entre os semanistas, foi voz unânime a manutenção do anonimato por questões «prudenciais» contra o perigo do aproveitamento, da dependência psicológica e da desvalorização do sentido de dádiva: «quem dá dá sem reservas».

É por este emaranhado de questões que se compreende a importância dos vários «Congressos Internacionais sobre os Transplantes», frequentemente feitos em Roma, e aos quais os Papas, desde Pio XII até Bento XVI, têm enviado mensagens solicitadas e cuidadosamente estudadas.

 

3 – Para situar a questão entre nós, informo que até 2008 realizaram-se em Portugal 8.139 transplantes de rins, 2.574 do fígado, 461 do coração, 95 do pâncreas, e 22 de pulmões, 9.999 da córnea (parte da frente dos olhos) e 4.040 de medula óssea.

Alguns transplantes fizeram-se a partir de cadáveres humanos (todos os do coração e da córnea), e outros de vivos e de mortos (rins), de vivos todos os de medula. Portugal é dos países da Europa mais generosos na cedência de órgãos entre vivos e depois da morte. Para isso, contribui muito a lei em vigor que estabelece que todos os cidadãos se pressupõem dadores, devendo os não dadores inscrever-se no RENDA (registo dos não dadores). Mesmo assim, os órgãos doados (que não se podem armazenar) não chegam para as necessidades, havendo casos de doentes que estavam em condições de receber um órgão e viver mas que morreram por não ter aparecido! Nos transplantes, o Estado contribui com verbas avultadas, mas a assistência por hemodiálise a um doente de rins é mais dispendiosa que o transplante. Há também casos de transplante sequencial (chamam-lhe em «dominó») em que um doente recebe um fígado ou parte dele de um dador sadio e cede o seu fígado algo anormal a uma pessoa sexagenária a quem esse fígado só faria mal daí a trinta anos, idade em que ela já estará no céu. É o processo utilizado às vezes na chamada doença dos «pezinhos» ou paramilóidose. Durante a Semana houve um testemunho dum caso, houve outro testemunho de transplante de medula óssea e eu próprio dei o testemunho do transplante cardíaco.

 

4 – Os temas doutrinários foram expostos pelos grandes especialistas que por ali passaram como tais ou como moderadores de mesa os Prof. João Rodrigues Pena e Alexandre Linhares Furtado (os grandes mestres da nova geração e iniciadores dos transplantes), e os actuais prof. Alfredo Mota (rins), Manuel Antunes (coração), prof. José Fragata (pulmões), Dr. António Campos Júnior (medula), prof. Joaquim Murta (córnea). Prof. João Lobo Antunes (Lisboa), um delegado do Dr. Eduardo Barroso (fígado), Dr.ª La Salete Martins (pâncreas), prof. Hélder Trindade e Dr. Gabriel Olim (questões de sangue e de medula), e muitos outros das áreas da antropologia, da ética e da administração.

Na sessão de encerramento, a Ministra da Saúde felicitou a «Comissão Nacional para a Pastoral da Saúde» pela organização deste Encontro e afirmou que a Igreja Católica é a grande campeã na educação dos povos nesta área dos transplantes, tendo D. Carlos de Azevedo referido que, por esse motivo, «quem devia estar ali era a Ministra da Educação e a da Cultura».

De facto, pelas razões acima expostas, há ainda um longo caminho a percorrer na educação das pessoas e das mentalidades. Foi ali dito que muita gente ainda confunde «medula óssea» com «espinal medula» quando afinal se trata de uma parte do sangue, nada tendo a ver com coluna vertebral. Entre as reservas à recolha de órgãos em cadáveres estão razões sem fundamento como o exagerado sentido de «propriedade e de respeito» do cadáver e a deficiente catequese sobre os mortos julgando que a recolha de órgãos irá prejudicar a «ressurreição» dos mortos, e o desconhecimento de que o corpo a que foram extraídos os órgãos em bom estado pode ser exposto no funeral.

A educação das pessoas deve fazer-se de longe, em tempo de saúde, e não na hora da morte quando a emoção perturba a reflexão com cargas afectivas e fantasmas infundados. «Os órgãos humanos não vão para o céu e o céu sabe que fazem falta na terra».

 

 

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