Sentados nas pequeninas cadeiras coloridas, que em alguns dias do ano recebem as crianças das escolas de Bragança, António Franchini e Roberto Chichorro aguardam os alunos que hão-de chegar em breve ao Centro de Arte Contemporânea Graça Morais. A sala é branca, muito branca, com apenas alguns desenhos que os mais novos deixaram nas paredes noutros tempos. Mas a conversa de espera tem cor, nem que seja a do Benfica, com Roberto Chichorro adepto fervoroso, ou o azul do Porto de Franchini, que lá vai lembrando quem ganhou este ano o campeonato. Clubes à parte, porque os dois são amigos, também se fala do tempo, do antes, de exposições, de pintores, de arte.
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Entusiasmado, continua, perante o olhar atento dos presentes. Porque, como sublinha, “a arte é um mundo livre, têm que acreditar nele. A arte é um dom que Deus nos deu e temos que mostrar esse dom com que fomos privilegiados. Acreditem que isto é possível e dou-vos os parabéns por terem escolhido uma carreira, das mais lindas que há, e que vos abre horizontes para todo o lado”. E depois o conselho: “Se pensam que a arte é para ganhar dinheiro ou ser famoso, esqueçam. Estas mãos que Deus vos deu são para fazerem coisas boas e não para se endeusarem. Muitos de vocês, seguramente, desenham melhor que eu. Têm potenciais fantásticos, mas sejam humildes. Vão devagar. E assim vão ter um futuro muito melhor”. E esse futuro até pode contar com o contributo de António Franchini que facultou de imediato os contactos à plateia, disponibilizando-se para uma visita guiada à sua galeria do Porto ou para apreciação de trabalhos dos alunos.
Pelo meio surgem muitas histórias. Da viagem a Nova Yorque, ao MoMA ver Picasso e Os Outros, para explicar que na arte se bebe muita coisa de muita gente, se cria, pois, um artista é um criador, mas sempre absorvendo o que o rodeia. Do visto recusado para a Rússia por um Putin ao jeito hitleriano, porque “a arte não tem nada de inocente, é poderosa”, de um Trump caricaturado, dos seus cristos em convívio com nus femininos e do choque da mãe e dos parabéns do seu amigo padre, das exposições dos alunos de Bragança que elogiou, e muitos outro episódios.
Depois, os alunos distribuem-se pelas mesas. Uns vão falar de ilustração, outros estarão atentos às cores quentes de Roberto Chichorro, à musicalidade dos seus traços.
António Franchini, passando de mão em mão trabalhos seus, lembra-lhes que é preciso olhar para as histórias, entrar nelas, tornarem-se personagens e as ilustrações são criadas a partir daí. “Temos que entrar e começar a criar o nosso mundo imaginário. Quando se faz ilustração a primeira coisa que temos que perceber é a quem se dirige. Temos que interpretar um texto, interiorizar, tornar-se uma personagem e dar asas à imaginação. Não se pode ser taxativo. E é muito importante pensar a cor”. E mais uma história, a sua de criador de rótulos de vinhos e de azeites. E de quando ao fim de semana percorre as grandes superfícies comerciais e observa compradores a pegar nas garrafas que fez suas pelos rótulos que chamam quem passa pela cor. Diverte-se a ver o olhar dos outros. “Há umas garrafas que vão sair agora sobre o campeonato do mundo de futebol. E eu usei muito a cor, tal como no campeonato europeu. É chamativa, representa uma festa, atrai as pessoas. E a cor deve ser sempre pensada”.
Roberto Chichorro comunica de outra maneira. Primeiro pede que os alunos esbocem um trabalho que os represente. Depois, de mesa em mesa, vai explicando: “Não devem começar pelo pormenor. Tem que ser um todo e os pormenores procuram-se, corrigindo, desenhando de novo”. Atentos à composição e organização dos elementos num quadro, muitos são os que mostram surpresa pela técnica do pintor moçambicano. São coisas que não sabiam. Começavam pelo pormenor, ainda meio tímido na folha, e agora percebem que é importante o todo que será pormenorizado.
O pintor das cores de África, que tem um azul só seu, ensina um traço mais contínuo que precisa de treino. “Era bom que fosse só um traço em todo o desenho, mas não pode ser, até porque perdíamos a nossa própria expressão”, lembra.
A tela branca no cavalete repousa nas suas costas. Do lápis de Roberto Chichorro sai um palhaço, e uma viola, e um pássaro. As gaiolas, as mulheres, a lua, que tantas vezes povoam as obras do pintor, ficam para outras telas. Agora a cor. É preciso escolher a cor, ir-se acertando e corrigindo. “Eu não pinto sobre o branco, pois a minha cor ficava muito crua. Pinto sobre uma base caqui, da tropa. É assim que eu gosto. A partir daí, construo todas as outras cores”.
E o pincel passa agora para outas mãos, as de algumas alunas que preenchem o pássaro ou a viola com as suas cores. Roberto Chichorro observa. Dá liberdade. Depois olha atento para o grupo. “A pintura é uma coisa só nossa, sai cá de dentro, sentimos, dói. As pessoas têm que ser honestas na sua pintura. É isto que eu sinto, é isto que eu quero dizer com a minha pintura, é isto que eu faço”, revela, acrescentando que “depois vamos aperfeiçoando a nossa técnica e começamos a ganhar uma forma própria de sermos nós. É a nossa personalidade que está lá posta”.
De gestos emotivos, o pintor vai dizendo: “Pintar aleija, dói muito, pois pomos aquilo que nós somos. Não é coisa de domingo. Pintar a sério sai do estômago. Muitas vezes chora-se, muitas vezes dança-se, estamos sempre apaixonados. Pintar não é fácil, não é divertido, sai muito cá de dentro”.
Não se esconde atrás da porta, como brincou António Franchini no seu discurso de boas vindas, mas não gosta de falar assim. Gosta de mostrar. A sua forma de falar é ser pintor. “Absorvemos tudo em silêncio e depois transmitimos às pessoas e cada um que se entenda. Eu gosto de conversar pintando. É assim que eu entendo o mundo e tento fazer-me entender”.
E o seu mundo é o de pintar aquilo que as pessoas merecem. Como sublinha, em conclusão, “se passo numa rua e vejo um cão faminto, se calhar pinto-o de azul. Azul para mostrar às pessoas que o cão merece ter cor. Uma criança com fome, não pinto moscas à volta da boca. Pinto um triciclo para que as pessoas entendam que a criança merece um triciclo. Uma mulher merece ter um filho lindo. Eu pinto aquilo que as pessoas têm direito a ter, a alegria, a festa, a vontade de viver”.
As horas na pequena sala branca foram pequenas. Pequenas para os alunos que queriam saber mais, ouvir histórias, perceber experiências. Pequenas para os artistas responsáveis pelos workshops inseridos no IV Festival Literário de Bragança. Mas a promessa ficou, a de uma residência artística de alguns dias em que todos se possam conhecer em cada tela experienciada e comunicar os seus silêncios, o que sai de dentro e dói, o dom que Deus deu.
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