Uma das funções dos «semanários» é reflectir sobre os acontecimentos e aprofundar as notícias que a celeridade dos «diários» faz morrer no dia seguinte. Nestas última semanas foram notícia em Portugal e na Igreja dois factos que merecem ser reflectidos, um acerca das relações da Igreja com o Governo português implicando a Concordata portuguesa, e outro sobre a relação da Igreja com as confissões cristãs não católicas e questões ligadas ao Ecumenismo. Não são temas de espuma como o futebol, movimentam-se num plano mais profundo.
1 – O primeiro facto nasceu da queixa dos Bispos por algum «mal- -estar» entre a Igreja e o Governo Português devido ao atraso do Governo na indicação de pessoas que hão-de constituir duas Comissões previstas na Concordata. A Concordata é um tratado internacional firmado entre dois Estados (neste caso o Estado Português – não o Governo, e a Santa Sé – não os Bispos) e que obriga as duas partes. Nesse tratado, está prevista a constituição de duas Comissões formadas de pessoas indicadas pelo Governo e pelos Bispos, as quais hão–de fazer a legislação concreta de áreas só genericamente tratadas no texto da Concordata. São áreas relativas ao Ensino, à Assistência religiosa aos presos nas cadeias oficiais e doentes dos hospitais públicos, aos dinheiros públicos para a construção de igrejas novas, à política da protecção à família e à natalidade, à legislação que ameaça a liberdade de imprensa e de informação. Queixam-se os Bispos da lentidão do Governo na constituição daquelas Comissões e de, entretanto, ir avançando como se a Concordata não obrigasse as duas partes.
Nesse contexto os Bispos pediram uma audiência ao Primeiro-Ministro para desfazer esse mal-estar e, na tarde do dia 12, o Primeiro-Ministro, acompanhado do Ministro da Presidência, concedeu aos três representantes dos Bispos (Presidente da Conferência Episcopal e Arcebispo de Braga, Cardeal Patriarcado, e Secretário da mesma), uma audiência que durou aproximadamente duas horas.
À saída da audiência, o cardeal Patriarca mostrou-se agradado pelo tom do «diálogo travado» e optimista quanto ao futuro, em ordem a evitar «um vazio legal», tendo o Primeiro-Ministro confessado nessa audiência desconhecer até àquele dia o dossier dos temas referidos na audiência.
2- O outro facto é um tema interno da Igreja e tem a ver com declarações doutrinárias recentes da «Congregação Romana para a Doutrina da Fé» acerca da natureza da Igreja e sobre a pessoa de Jesus.
Sem descer aqui a pormenores desnecessários, a deficiente compreensão de documentos conciliares e de termos usados em textos católicos espalhou por toda a parte a ideia de que «todas as religiões valem o mesmo», que «a Igreja Católica não é a única Igreja de Cristo», e que «Jesus Cristo não é o único Salvador».
Como isso? É sabido que, depois do Concílio e com o Papa Paulo VI, o «diálogo» entre as pessoas, as religiões e as culturas foi instituído como o método a utilizar na evangelização das pessoas e dos grupos pelo respeito devido às consciências que, mesmo erradas, têm direito a ser ouvidas sobre temas desse género. Também no plano das instituições a Igreja deve dialogar com as outras confissões cristãs (Ortodoxa e Protestantes), onde há muita gente de boa fé. Todavia, quanto se trata de afirmar onde está a Igreja desejada e instituída por Jesus Cristo, o Concílio ensina que essa Igreja «subiste» na Igreja Católica, apesar dos pecados de muitos dos seus membros, mesmo da hierarquia.
Ora aconteceu que, com os anos, os termos «diálogo» e «subsiste» foram divulgadas entre o grande público com um significado diferente daquele que a Igreja lhes dá: a palavra «diálogo», que fora proposto como «método e caminho» para avançar, tornou-se numa «ideologia», um ideal tranquilizante, um ponto de chegada, como se bastasse a conversa das pessoas religiosas sem necessidade de examinarem as suas ideias e admitir a hipótese de se converterem. Algo semelhante aconteceu com a palavra «subsiste». O sentido do Concílio era afirmar que a Igreja sonhada por Jesus «está» na Igreja de Roma e só nela, apesar das suas fraquezas ao longo da história, e não é uma espécie de «comunidade ideal a construir com a colaboração de todos». As outras confissões cristãs (Ortodoxa e Protestantes) têm alguns elementos da verdadeira Igreja (mais a Ortodoxa que as Protestantes, pois aquela tem sacramentos e verdadeiros Bispos, são igrejas, e as Protestantes não têm sacramentos nem verdadeiros pastores). Em nenhuma delas, porém, «subsiste» a Igreja de Cristo. Isto não significa monolitismo da Igreja nem exclui alguma evolução na Igreja Católica, mormente no modo de entender e exercer o poder.
Algo semelhante se deve dizer da pessoa de Jesus como o único Salvador do mundo. Nas religiões não cristãs há verdadeiros sentimentos religiosos, há algumas verdades morais dignas de respeito, mas a sua estrutura religiosa não é igual à fé cristã, contém erros gravíssimos. Jesus não é, pois, o fundador de uma religião como muitos outros, mas o Filho de Deus e Salvador único.
Estas declarações trouxeram alguma agitação nos grupos empenhados no «Ecumenismo» e grupos defensores da «Tolerância», como se se regressasse aos tempos antigos. O Cardeal Kasper encarregado desta área esclareceu que o diálogo ecuménico só tem a ganhar com a clareza que se tem da posição dos interlocutores. Por sua vez, a «tolerância» é uma atitude comportamental do diálogo das pessoas mas não é um sistema doutrinário resultante de não haver verdade nem certeza de nada. Defender uma tal tolerância é uma forma refinada de relativismo, a chaga cultural do nosso tempo. Na alma cristã, a tolerância é uma forma de caridade para com aqueles que não pensam como nós, mas a verdade existe e é preciso procurá-la, não podendo ficar-se num relativismo permanente.
D. Joaquim Gonçalves * Bispo de Vila Real