Segunda-feira, 14 de Outubro de 2024
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Uma tragédia, há quarenta anos, na zona de Campeã

O desaparecimento de crianças, a violência doméstica, os acidentes rodoviários e os afogamentos nas águas do mar e dos rios são, entre nós, em cada ano que passa, um autêntico flagelo, sobretudo no verão. A tal nos temos vindo a referir, alertando para a letalidade destes factos. No inverno, a falta de condições de habitabilidade e a despreocupação com que o aquecimento é encarado motivam, de igual modo, muitas mortes em Portugal, por intoxicação. A juntar a isso tudo, ocorrem gigantescos incêndios florestais, muitos deles assaltando as casas das povoações

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Nesta época de verão, os incêndios já roubaram vidas e causaram prejuízos e infortúnios elevados. A maior parte deles, segundo rezam as estatísticas, terá sido causada por mentes doentias e por mãos criminosas.

Já em 2017, em 17 de junho, no pavoroso incêndio que deflagrou na região de Pedrógão Grande (no qual morreram 66 pessoas, muitas delas quando fugiam às chamas) se questionou a razão pela qual tão grande eclosão sucedeu. Entre as diversas hipóteses de resposta que foram equacionadas, também se falou de uma trovoada, de uma faísca como detonadora de um território combustível fácil, fruto da pouca (ou nenhuma) atenção que, nessa altura, era deficitária nas matas e nas florestas portuguesas.

“EU NÃO TENHO MEDO DA TROVOADA, MAS TENHO-LHE MUITO RESPEITO!”

Quando as nuvens desenham figuras estranhas (há quem lhes chame “castelos”) no céu, em tempo de calor e de elevada pressão atmosférica, isso é sinal de trovoada iminente. Quando essas nuvens (“cumulonimbos”) despejam o seu dilúvio de vento, chuva, relâmpagos, raios e trovões, o efeito chega a ser aterrador.

“Eu não tenho medo da trovoada, mas tenho-lhe muito respeito!” – costumam afiançar os que parecem ser os menos temerosos. Mas o medo às trovoadas existe, desde sempre. Sango (na mitologia africana) ou Thor, o deus nórdico da trovoada, são representados com um pesado malho na mão, fabricando os raios que antes se julgava virem diretamente do céu, quando os deuses se zangavam. Na mitologia grega (Hefesto) ou romana (Vulcano) a representação iconográfica é semelhante: uma forja, um ferreiro e o ritmo do bater de malhos sobre o ferro e o fogo. Os raios seriam feitos ali e os deuses do fogo, do ferro, da trovoada, despejavam-nos sobre a terra. Mesmo no Cristianismo, na devoção aos Santos, há uma protetora para as trovoadas: Santa Bárbara, a quem são dirigidas preces para que a tormenta se afaste e não cause prejuízos, “nem nas coisas, nem nas pessoas, nem nos animais”.

AS TOVOADAS CAUSAM INCÊNDIOS?

As nuvens de trovoada são massas de ar, água e gelo, sacudidas por correntes violentas, em altitude. As gotas de água e os cristais do gelo são desfeitos e esmagados uns contra os outros com tal força que se carregam de eletricidade estática, tendendo a aglomerar-se no cimo das nuvens (as de cargas positivas) ou na sua base (as de cargas negativas). Com o solo a adquirir, de igual forma, esse tipo de energia, a diferença entre essas cargas elétricas causam o aparecimento de faíscas entre as nuvens ou entre as nuvens e o solo, tendendo em abater-se em lugares altos, angulosos e através de bons condutores de eletricidade (daí a existência dos para-raios). Quando surge um raio, o ar à sua volta fica cinco vezes mais quente que a superfície do Sol. Expande-se, por isso, a uma velocidade supersónica, causando o estrondo tormentoso do trovão, depois de anunciado pelo relâmpago intenso e luminoso que chega a eliminar a escuridão da noite ou da madrugada. Os raios surgem quando uma chispa entre as cargas entrenublares os faz disparar em sentido descendente, devido às enormes diferenças de pressão atmosférica. As grandes nuvens de trovoada chegam aos 15-20 quilómetros de altitude, cobrindo uma área de cinco a nove quilómetros. Chegam a atingir a estratosfera. Muitos não atingem o solo. Outros fazem-no, causando incómodos e prejuízos. Por vezes, os cristais de gelo chegam ao chão das ruas e dos campos, em grandes pedras: o granizo. As trovoadas são mais frequentes ao entardecer, prolongando-se até à entrada da noite, em virtude do aquecimento e resfriamento diário da superfície terrestre.

SETE PESSOAS MORTAS, DE UMA SÓ VEZ, EM AGOSTO DE 1981

Foi há cerca de quarenta anos. Mais propriamente, na primeira hora de 16 de agosto de 1981. Havia festa em Vila Cova (Campeã) – em 15 de agosto, dia de feriado, celebra-se Nossa Senhora da Assunção – e ali se juntou uma multidão de pessoas em animado arraial, vinda das terras vizinhas, uma delas a aldeia de Montes, localidade escondida e quase invisível nas dobras da serra do Marão. Mesmo assim, foi escolhida pelos “deuses do fogo e dos trovões” para ali serem precipitadas faíscas enormes e alarmantes para aqueles que lá tinham permanecido.

POTENTES DESCARGAS ELÉTRICAS

Ninguém podia adivinhar o que aconteceria depois de os primeiros trovões se fazerem anunciar pela uma hora da madrugada desse dia, em Montes, freguesia de Campeã. Quem estava na festa não se apercebeu de uma tragédia inimaginável, mas quem tinha ficado em casa ou já regressado de Vila Cova foram alvo, testemunhas e vítimas de uma trovoada de uma envergadura tal que acabaria por matar sete pessoas, cinco delas da mesma família – avó, pai, mãe, filho e filha.

“Eram daquela casa, ali, vê? A filha estava grávida. O marido dela sobreviveu, mora agora na Boavista” – apontou-nos um homem sentado na escadaria de sua casa, numa rua empinada que é trajeto entre a parte mais alta da aldeia e o pequeno largo da capela de São Frutuoso, templo ali erigido em 1748. Ele foi testemunha do acontecimento ao qual sobreviveu. “Por isso, na verdade, não foram sete as pessoas que morreram, mas, sim, oito” – completou.

Chegámos à entrada de Montes e vimos três pessoas juntas à entrada de uma pequena casa. Um casal mais velho e uma senhora mais nova, prima dos outros dois. Esta ficou viúva nesse dia de tragédia.

“Deixe-se estar aí à distância, não se chegue aqui ao pé de nós, mantenha a máscara, não nos pergunte o nosso nome nem nos tire fotografias” – avisou, solene e precavida, também assustada e desconfiada, a esposa do casal que ainda sente, “como se fosse ontem” aquilo que ali mesmo se passou.

Dos que morreram, podem ser conhecidos os nomes que estão inscritos nos jazigos onde foram sepultados, no Cemitério Velho da Campeã. Ali estão todos os da mesma família, alinhados uns ao lado dos outros, na mesma fila de uma ala central, em campas iguais.

O CHÃO MOLHADO É QUE OS MATOU

De repente, uma faísca caiu e o solo molhado ficou eletrificado. Quem estava na rua tombou. Acorreram outros, em desespero e em grande confusão. Caíram também.

Na sua capa, em manchete, “O Comércio do Porto” de 17 de agosto de 1981 escreveu: “Se mais gente saísse das casas de Montes mais morreria”.

“Eu não morri porque desliguei o contador e saí de casa com a ideia de avisar a companhia da eletricidade, porque entretanto ficámos às escuras, a luz foi abaixo. Corri para o telefone público que era o único que aqui havia. Mas encontrei no caminho a minha prima (esta senhora viúva que está hoje aqui connosco) com o filho ao colo, aparentemente desmaiado e queimado num braço. Já não telefonei, agarrei no menino e no pai que respirava aos arranques e com muita dificuldade e levei-os para o hospital de Vila Real” — esclareceu.

“O menino que parecia estar em paragem respiratória, recuperou no hospital e o pai, que eu pensava que iria salvar-se, acabou por falecer lá” – continuou.

O perigo das trovoadas foi assinalado dramaticamente na Serra do Marão, em Montes, há quarenta anos. Um alarme, um aviso para todos nós, até para aqueles que se deliciam com os raios e os observam das janelas e dos terraços, procurando retê-los nos telemóveis e nas máquinas fotográficas.

Há cuidados a ter, como em tudo na vida. Mas os efeitos das trovoadas são inesperados. Não bastará dizer que não temos medo. É necessário, então, respeitá-las.

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