Para aceder ao financiamento da bazuca europeia, Portugal elaborou um Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) onde estão previstas 36 reformas e 77 investimentos que surgem estruturados de acordo com as três grandes prioridades definidas pela UE para o futuro da construção europeia: resiliência, transição climática e transição digital.
Assim que o documento foi disponibilizado para consulta pública, não tardaram as vozes críticas ao plano e àqueles que o desenharam. As vozes que mais se ouviram vieram do interior do país que, segundo os autarcas, foi, mais uma vez, esquecido.
“Se se pretendia que, de facto, este plano fosse para reformas estruturais, nomeadamente, ao nível dos territórios e da coesão territorial, aquilo que vemos é que o documento é uma mão cheia de nada”, começou por dizer Artur Nunes, presidente da Comunidade Intermunicipal de Terras de Trás-os-Montes, acrescentando que “o PRR não vem resolver o problema, como vem agravar o fosso que existe entre o litoral e o interior”, e que “se perdeu uma oportunidade de, pelo menos, olhar para o país como um todo”.
A CIM Douro foi das primeiras a reagir ao plano apresentado, considerando, publicamente, que, com o mesmo, o Governo assinou a “sentença de morte” do interior de Portugal. “Isto é um roubo, é um assalto àquilo que são os direitos da Constituição de um país que se quer homogéneo, igual e equilibrado”, referiu Carlos Santiago, presidente da CIM Douro.
O também presidente da autarquia de Sernancelhe foi mais longe atribuindo o título de coveiro do interior a António Costa, primeiro-ministro e a António Costa e Silva, o “para-ministro” que pensou o plano para recuperar Portugal.
“O país vai dar conta, no final de maio, início de junho, quando se conhecerem os primeiros resultados dos Censos”. Carlos Santiago acabou mesmo por propor a criação de uma associação de municípios do interior do país, dizendo que o mesmo precisa de uma “revolução” e “dizer basta”. “Andamos há 40 anos a litoralizar o país. Está na hora de esta oportunidade servir a região para os próximos 40 anos”.
Na CIM do Alto Tâmega, a leitura do PRR foi igualmente crítica e com algumas reservas sobre aquela que poderia ser a derradeira oportunidade para investir nos territórios do interior e de baixa densidade populacional. “Poderia ser o balão de oxigénio que todos estávamos à espera.
O país não é só o litoral e se nós queremos que realmente as pessoas possam ter uma oportunidade de aqui continuarem a viver e de ter o seu futuro assegurado, não as podemos ignorar e perder oportunidades desta natureza”, afirmou João Noronha, presidente da CIM do Alto Tâmega.
“FIZERAM TÁBUA RASA DAS PROPOSTAS DAS CIM’S”
Das três CIM´s que compõem a região de Trás-os-Montes e Alto Douro, apenas a de Terras-de-Trás-os-Montes vê dois projetos contemplados no PRR: a ligação Bragança-Puebla de Sanábria e a Nacional 103 entre Vinhais-Bragança, mas que não são suficientes na opinião dos autarcas.
“Não são apenas esses dois investimentos que poderão resolver o problema estrutural, nomeadamente dos territórios das Terras de Trás-os-Montes”, sublinhou o também autarca de Miranda do Douro, Artur Nunes, acrescentando que “não temos a certeza se vai haver execução” visto que são dois projetos que “já vêm em diferentes documentos, reivindicados e apoiados há muito tempo”.
“O PRR é uma oportunidade perdida”
Por seu lado, a CIM Douro, depois de ter apresentado uma estratégia conjunta com os eixos prioritários para a região como contributo para o PRR, viu ser-lhe negada a construção do IC26 e a internacionalização da Linha do Douro.
“Não estamos aqui a mendigar nada, estamos a exigir. O IC26 é um projeto que tem barbas. É uma ligação entre a principal entrada do país, que é a A25, e a A24, que liga o interior norte do país a uma das regiões que mais contribuiu para a balança comercial da agricultura, que é o Douro”, frisou Carlos Santiago, questionando-se ainda sobre quem não quer uma ligação transfronteiriça, referindo-se à internacionalização da Linha do Douro.
“Se calhar custa mais um quilómetro de metro do Porto do que a ligação a Barca D’Alva e andamos constantemente a dizer que vamos estudar. É miserável”, disse o autarca de Sernancelhe, revelando que a CIM Douro vai, brevemente, reunir-se com responsáveis espanhóis para que se avance com o projeto.
Também a CIM do Alto Tâmega entregou um plano “devidamente estruturado e bem elaborado”, que foi enviado “a quem de direito e com competência”, mas que não foi tido em conta.
“Não vemos lá a ligação Chaves-Montalegre, nem a ligação Chaves- Valpaços. Achamos que devia haver algum investimento público e estrutural que não está plasmado no texto.
Achamos que os investimentos de promoção à mobilidade ficam aquém das nossas expectativas”, referiu João Noronha, sublinhando que o PRR tem uma lacuna no que diz respeito aos incentivos à fixação das populações e ao emprego qualificado, fatores que, ele e os seus colegas, consideram essenciais para a “efetiva promoção da coesão social e territorial” e que “podem alavancar a região”, que, em 2017, definiu uma estratégia conjunta para o desenvolvimento da mesma, tendo a água como elemento-chave.
João Noronha defendeu que, só com incentivos por parte do Governo, e através de uma discriminação positiva, é que o programa poderá ser exequível na sua totalidade.
“Poderia ser o balão de oxigénio que todos estávamos à espera”
“O desenvolvimento dos empreendimentos de aproveitamento do rio Tâmega, as barragens, vão permitir que o país atinja os seus objetivos no que toca à descarbonização.
Estamos a contribuir para a riqueza nacional e o mínimo que podemos ter é uma contrapartida, uma discriminação positiva, é só o que pedimos”.
Os três presidentes das CIM’s foram ainda unânimes na esperança de que o plano seja revisto e que nele vejam contempladas algumas das suas reivindicações, deixando duras críticas ao facto de o Governo não ter ouvido os autarcas aquando da elaboração do plano.
“Quem pensa o país, pensa também que os autarcas locais, têm sido o grande motor de desenvolvimento e de investimento e, sendo assim, devíamos ter sido ouvidos”, disse Artur Nunes, acrescentando que “estou na expectativa de que quem idealizou o plano possa olhar para os nossos contributos e fazer as devidas alterações. Opinião partilhada por Carlos Santiago que considera que “devia ter havido uma discussão pública alargada, que “as CIM’S e as CCDR deviam ter sido ouvidas” e que o Governo “não dá qualquer importância, em termos intelectuais e como pessoas pensantes, aos autarcas”.
“Nós somos resilientes e temos que nos reinventar em função da maldade que nos estão a fazer”
“Era um plano em que todos devíamos ter participado. Fizeram tábua rasa de todas as propostas que se fizeram na 1ª audiência”, disse, pegando num dos eixos do PRR, da transição digital. “Estamos a discutir o 5G quando nós nem sequer temos internet para os nossos alunos terem aulas à distância. Mal temos rede em algumas zonas. Numa viagem pelo IC5, não conseguimos falar cinco minutos entre Sabrosa e Torre de Moncorvo, por exemplo”.
A DÚVIDA NA GESTÃO DA BAZUCA EUROPEIA
São quase 14 mil milhões de euros que Portugal vai receber da União Europeia, mas persiste a dúvida de como serão aplicados. “Estamos muito expectantes sobre como esses milhões serão aplicados porque essas linhas ainda não estão definidas, é tudo falado de uma forma muito abrangente, não temos certezas.
Apenas sabemos que era muito importante que esse dinheiro pudesse chegar a uma região como a nossa. Sabemos, como ninguém, geri-lo”, referiu João Noronha, da CIM do Alto Tâmega.
“Nós não somos capazes de gerir os fundos comunitários e isso preocupa-me”
Já Carlos Santiago, da CIM Douro, tem dúvidas disso, numa altura em que ainda faltam executar cerca de 13 milhões de euros do anterior Quadro Comunitário que termina em 2022.
“Nós não somos capazes de gerir os fundos comunitários e isso preocupa-me. Vamos receber não sei quantos mil milhões do novo Quadro Comunitário até 2027, do PRR até 2026, esta é a última oportunidade”, disse, acrescentando que a tranche que cabe a Portugal da bazuca europeia “é de todos os portugueses e não só dos que vivem nos grandes centros urbanos”.
Apesar das críticas e das insatisfações que já fizeram chegar a quem de direito, Artur Nunes, da CIM TTM, realça que “nós somos resilientes e temos que nos reinventar em função da maldade que nos estão a fazer porque, no fundo, a nossa criatividade, a nossa resiliência e a nossa força e coragem é o que vamos ter que encontrar para resistir, mais uma vez, a este desleixo para com o interior”.