Depois de tantas incompreensões de que fora vítima ao longo dos anos, procurara então repousar. Sentar-se num riacho, olhar para as estrelas e esperar delas a sua compreensão. Estava magoado com os homens e com alguns amigos que o tinham abandonado. Não queria morrer sem perdoar a todos aqueles que o quiseram prejudicar na sua carreira artística. A tristeza estava nele instalada como carraça em corpo de velho moribundo ou pulga em cão rafeiro.
Estava revoltado mais do que nunca. Sentia uma doença malvada no corpo, incurável, espécie de demónio indestrutível que se ia alastrando por todo o seu corpo fragilizado, destroçado, por toda a sua casa, por todos os cantos onde fora em tempos feliz com a sua Joaquina e os seus filhos que desde cedo fugiram para longe para ganharem o pão e conquistarem a auréola de um futuro risonho. E deles o pobre homem nunca tivera notícias.
Agora o sofrimento psicológico era insuportável fazendo com que as noites fossem preenchidas por pesadelos. A morte iria em breve separá-lo dos amigos, da família e do cão Jeremias que já muito velho se deixava arrastar vivendo com ele a tristeza de sentir as dores do dono e o pressentimento de uma separação para sempre. Estava magro o Jeremias.
As insónias dominavam-lhe os pensamentos e o corpo flácido transbordava de dores como rio que galga de revolta as suas margens. Sentia-se naufragado no miolo do mar em águas escuras que ameaçavam engoli-lo…
Com a doença, o caminho contra todos os ventos estava ali desenhado…implantado como sentinela fiel até que a morte lhe surgisse de frente.
De manhã saía de casa. O nascer do sol emocionava-o porque sabia que estava em tournée giratória de despedida. Em pensamentos apertava a mulher no seu corpo magro e os filhos com a ternura dos beijos. Lembrava o dedicado Jeremias.
A força do vento parecia empurrá-lo, traçando-lhe um caminho em direção ao céu e às estrelas que há poucas noites atrás ainda estavam vivas e cintilantes, lindas e nos seus pontos mais luminosos ele parecia ver a silhueta da sua Joaquina ainda com os cabelos esvoaçando ao vento. Ela parecia chamá-lo com a sua voz peculiar e doce, angelical e apaixonada. Perante a doença incurável e o vislumbre do chamamento final, o velho vivia resignado em partir quanto antes. Era o seu único desejo, a sua única e derradeira vitória.
O ódio, a inveja e a vaidade são inimigos destruidores, são parasitas da vida de cada um de nós. São palavras universais, rostos da maldade, filhos do caos. Este velho homem antes de morrer pensava na vida que tivera e dizia que dela pouco sabia mas que a morte era infinita e quando a conhecíamos já ela tinha passado em corrida, poeirenta como louça esquecida.■