A acumulação de chegadas a Roma por qualquer caminho que se tome faz de nós fartinhos porque é Roma que, de repente, vem ter ao nosso encontro em vez de esta aguardar quietinha pela nossa chegada. Teriam obrigatoriamente de chegar até mim, de alguma forma, teorias e processos de desenvolvimento pessoal, mesmo evitando contacto direto. Por meio da televisão, da confraternização, senti a afiada ponta das frases desses livros que vêm como armas brancas ao ataque da barriga que encolho e engelho com todas as minhas forças. São tantas e tão afiadas, mas como se os amoladores desapareceram? Clamo para que não se entranhem em mim, mas é muito difícil nos dias de hoje ignorá-las quando as pessoas insolentemente incluem e fincam um par de frases refrescantes como água morna no meio dos seus discursos. Foi já do lado dos lesados, sem esperança ironicamente, que fiquei a saber que se ia dar na minha vida uma transformação. Exaltei-me. É metafórica, é real, é assim tão grande a mudança, é drástica? Nervoso, ia-me perguntando se estava pronto para essa transformação. Mas depressa me acalmei quando ouvi que é a transformação que tem de estar pronta para mim e não eu para ela.
Inesperada foi a forma da transformação se apresentar, mas estava ali no lavatório, encarnada em máquina de barbear.
Conhecia o perigo que representava a transição de lâmina para máquina de barbear ao serviço do aprumo facial. A mudança é desgraçada. A desgraça designou a troca antes de se adivinhar qualquer outra que fosse visível. Meios mais honrosos existem para desfiguração. Em consciência, mas como perfeito inconsciente comportei o risco.
Foi assim que ajeitei a barba. Aprofundei técnicas para a ter compostinha. Comecei pelo lado esquerdo, repuxei a pele da zona da bochecha na direção do olho e tracei a linha, tudo supervisionado pelo olho direito. Fiz o mesmo do outro lado… bem… não exatamente o mesmo. Precisava só de um retoque. A segunda linha, a do lado direito, não estava alinhada com a primeira, então fiz da primeira uma segunda, que se tornou numa terceira pois ficou ainda mais distante da segunda. Mais cuidadosamente, arranjei lentamente do lado direito para se assemelhar ao desbaste esquerdino. Chegou ao ponto, em que se prosseguisse nesse lado só teria barba abaixo do maxilar, então pousei a máquina, semi-amishamente. Longa introspeção diante do espelho, refletia se mantinha a desigualdade que me era refletida. Deu bom resultado, deu lugar a uma sensata rebelião. Sair de casa tornou-se imperativo quando era proibitivo. Impunha-se castigar o meu lado esquerdo e não sob a pena leve do abandono, mas havia decido exaustá-lo fazendo tudo o que tivesse para fazer em exclusivo desse lado.
O lavatório, livre de pêlo do lado esquerdo, ficou uma reles imitação minha. Apressei-me a sair de casa e tive de escancarar a porta para poder deixá-la pelo lado esquerdo. Apercebi-me a meio da travessia da estrada para o lado de lá da rua, o esquerdo para a direção que queria seguir, que tinha a roupa perfeitamente engomada e que nessa altura já não me agradava estar homogeneamente vestido. Fiz uma prova rápida de sobriedade perante condutores e transeuntes, amarfanhando as roupas abanando-me com a graciosidade que o engelhamento exige. Sacudir a perna e morder a roupa que cobre a omoplata trazendo-a para a frente foram protótipos da valsa, aquando da sua origem. Daí segui colado às paredes, por ficarem mais à esquerda, sem exageros, sem raspar pois se fosse para tirar o resto da barba tinha ficado em casa. De repente, avisto tardiamente alguém também colado à parede que vem na minha direção e entendo as suas intenções de não se desviar. Um homem nos seus cinquentas, uma espécie de marmanjo sénior. O senhor pára diante de mim em pávido e sereno, o que substituiu a fúria pela intriga. Intrigas que num dia de verão com o sol das três da tarde a bater, pode ser exasperante. Não me deixa passar é? Mas… sabe o meu propósito? Já apanhou pessoas que afeitaram irregularmente a barba? É barbeiro?! Deveria deixar passar o senhor, talvez, tem mais idade e teria prioridade, aí ganha ele, mas em estado de espírito quem ganha? A irritação crescia, não ia abdicar do meu compromisso, e ela vinha já tão alta, havia contornado contrariado dois pedintes! Encrustam-se na parede como quem se amarra à vida. Ocorria-me uma avalanche de pensamentos e este tormento de senhor tornava-se abominável, mais que eu. Ele poderia estar à espera de alguém, mas não se encostaria à parede, virado para outro lado, em vez de eu sentir cada expiração dele? Então e se alguém viesse, cumprimentava-o, ficava ali no nosso meio a falar com ele? Que tipo de pessoa cabia ali? Seria mais alto que eu? Teria chapéu? Mais alto, dava jeito uma sombrinha, embora tivesse um misto de sentimentos, estava a gostar de ter o lado esquerdo a arder. Só me faltava que tivesse chapéu e fosse da minha altura para as abas roçarem a cara, com a minha sorte ficariam à medida do meu nariz, da cana, e seria aquela pessoa que abana a cabeça a cada sim e a cada não e a cada espanto inclina-a para trás. Excluindo a probabilidade mais forte de o homem ter um círculo de amigos de homens-palito, forçosamente teria de aconchegar alguém. Não trocámos uma palavra, talvez ele não tivesse amigos. Esta situação também não faria de mim o primeiro. Assim que penso numa amizade, o homem retira um snack do bolso, estivesse eu num filme do Charlie Chaplin e o homem sacaria snack atrás de snack, mas já era caricato o suficiente este impasse ter-lhe aberto o apetite! Vejo-o a esticar o braço e fazer uma sinalética dirigida à pessoa que limpava as mesas de uma esplanada de um café do outro lado da estrada como quem pede um café. Levantei os calcanhares e espreitei para as suas costas à procura de uma mochila com equipamento para acampar. Não há serviço quando uma estrada separa o cliente do estabelecimento, não é como ter uma quinta, ser vizinho de outro dono de quinta, separados por um rio, pedir um limão dos limoeiros dele e ele atirá-lo para cá. Não há travessia do vizinho; só do limão.
Resignei-me, e especado proporcionou-se ali um momento de observação mútua, como quem já só encara o destino.
A dado momento pensei que queria os meus ténis. Imaginava que, num filme de Charlie Chaplin, magicamente a situação se resolvesse com a abertura de um buraco no chão para o qual eu descia e simultaneamente com um andaime à beira do buraco que o homem subiria. Cairia um escadote no meio de nós, pronto a subir, no cimento por secar que tivesse sido usado para tapar o buraco e para evitar o ralicato depois de nos termos enfiado lá ao mesmo tempo, em que a nossa envergadura nos impede de escorrer ou de sair. Servisse a cabeça dele de trampolim e eu leve como uma pluma afundaria o meu pé e passaria o obstáculo, sem o sucesso de o fazer pelo lado esquerdo. Cinema mudo é cinema imberbe, como poderia estar-se a passar uma coisa destas comigo?
Tanta coisa e ao mesmo tempo nenhuma pela qual ele estaria a fazer isto. Ele tinha ar de um pastor aborrecido, tão aborrecido como se para trazer o rebanho dele precisasse de outro pastor que o fizesse andar.
“Quer fazer parte dos escuteiros?”- Diz-me ele. Ah! Então era daí que vinha aquela pinta. “Todo o dia é pacífico, se tivermos paz em nós.” Muito engraçado um escuteiro falar de nós. Testemunhas de Jeová e escuteiros têm cada estratégia de recrutamento! Apertámos cordialmente as mãos esquerdas como cavalheiros para selar o meu ingresso nos scouts. Eu digo scouts.
Devem estar a pensar, ele fez todos os percursos ao pé-coxinho? Não.