Terça-feira, 14 de Janeiro de 2025
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António Torres
António Torres
Estudante de Mestrado Integrado em Engenharia de Materiais

Se quiser falecer mais cedo, é mais 1 euro e 20 faz favor

Alguém mais experienciou aquele momento com sabor a vitória, quando, de forma surpreendente, alcançamos o sucesso numa tarefa irrelevante?

Às vezes um entretenimento puro de curta duração, que achamos que é irrepetível por nós em qualquer outro momento e, possivelmente, qual quê, certamente, irrepetível por qualquer outro praticante no mundo inteiro. Ah… esse poder. Sabe bem: esquecermo-nos que existem sete biliões de pessoas no mesmo patamar que nós. Excluímos vários animais, eles não seriam capazes de fazer isso, e drogados também não. Não vamos pensar muito porque se de repente achamos que também esses são capazes, não sobra lugar ao orgulho que tivemos no nosso desempenho… Esse poder. É costume ascendermos a esse lugar por nos valorizarmos a esse ponto.

Hoje colocaram-me nesse lugar. Fiz uma viagem de Vila Real a Braga de autocarro. Não fosse luxo suficiente colocaram-me no primeiro dos 4 lugares da frente. Um pouco a mais, se querem saber, que eu não sou muito dado a realezas. Portanto, eles olharam para mim e de acordo com a imagem diante deles, atribuíram-me o lugar dentro do autocarro que julgam eu ter cá fora no natural estrato social, o primeiro. Isto, porque o autocarro vinha cheio. O preço de ter estampada a palavra “lorde” na testa foi de um euro e vinte. Apenas este ligeiro acréscimo ao preço normal do bilhete para uma profunda mudança no requinte, citando a especialista em requinte, Senhora da Ferrero Rocher. Entendi que os que estavam lá atrás era pela razão que se tivessem de desembolsar a quantia tinham de pedir, mas a quem? Estavam rodeados de alternativas! Já eu não tive outra opção e adquiri o sonho rodoviário, mas tendo-a adquiriria à mesma porque estou a ver, ao subir aquelas escadinhas de entrada na camioneta, o stairway to heaven, a suceder-me o moral da história do “Rei vai nu!” que é: Quem é que não aprecia o corpo nu de El-Rei?

Tudo isto foi possível graças a uma reunião de administradores da Rede Expressos da qual se retirou a conclusão de que o potencial que os quatro lugares da frente têm para oferecer, nomeadamente a vista, tinha de ser aproveitado. E não por uns pobretanas sortudos. A vista, que dali era há muito subvalorizada, tal como a experiência que não se resume apenas a uma vista melhorada, mais ampla, vasta, rica. É muito mais! Qual muito mais? Eu até posso dizer, mas fica a garantia de que uma vez na fila da frente parece que alguém borrifa um pouco de Ajax para cada glóbulo ocular nosso e esfrega com um pano microfibra e fica-se a ver tudo o que andávamos a perder. Mencionado um produto de limpeza de superfícies brilhantes acrescento o que vi: nucas, nucas com mais pelo, nucas com menos pelo, com ele mais organizado ou desorganizado, nucas caducas e nucas reluzentes, todas elas entre castanheiros despidos, entre jarros e amendoeiras em flor, entre eucaliptos e pinheiros, e entre pinheiros e eucaliptos queimados. Estes lugares estimulam mais sentidos para além da visão. Trata-se de poder cheirar o perfume que são os motoristas, cheirar o que se quiser até a globalidade do motorista. Eu costumo cheirar mais no geral: cabelo, os ombros na sua completa amplitude, suores, uns mais que outros, por norma escuso-me do das costas porque fico-me pela melodia do descolar progressivo da espalda do motorista do assento.

Trata-se de poder sussurrar o que se quiser ao ouvido do vigoroso condutor, mesmo aquilo que costumo retirar do meu reportório de sussurros ao estilo de “Good Night” dos Beatles “Senhor Condutor ponha o pé no acelerador” faço esta nova roupagem com carinho e por admiração por este tipo de profissional, sem precisar de estar aos gritos que é muito plebeu. Também pouco plebeu é o que faço de cuidar do motorista, fazer o melhor por uma relação mais próxima, que tradicionalmente sofre do comportamento comodista do plebeu e se consuma no trato distante “senhor motorista” como diz a boca plebeia.

Sobre a reunião, presenciei, aliás com a mais notada das presenças. “Por um euro e vinte devíamos dar um cabaz de valor igual ou inferior a um euro, mas o quê? Uma lata de conservas porque nós temos cá lata… ba dum tss!” Os nobres funcionários designados para estas reuniões fazem-se acompanhar de um instrumento musical para sustentar melhor o seu argumento e a sorte, da qual eu desconfio, que teve este individuo de ter uma bateria a seu lado. Pessoalmente entenderia melhor a sua posição acompanhada de harpa. Todos os presentes estavam visivelmente confusos, a boa ideia do cabaz contrariava a escolha musical de suporte argumentativo. “Um euro e vinte é investimento para coisas muito, muito giras. E se eu lhe disser que muito, muito giro é falecer, investia?” Tocou de novo a bateria. Durante o silêncio que se seguiu, perspetivava-se o toque uníssono da flauta de pan, sinal de aprovação de despedir o funcionário que mais recentemente tomasse a palavra. Tocaram flauta de pan à sua saída, todos, exceto o chefe que desfazia a integridade sólida do conjunto de pífaros em pífaros individuais para lhos arremessar. A música não só o tocou como o atingiu.

Nunca é graças a um engraçadinho que se tem ou ganha alguma coisa. Gosto muito de sentido de humor, mas não suporto ironias.

Mas até eu achei graça, como assim falecer? Mesmo no caso de acontecer tem graça, ou graciosidade, porque quem dera a muitos, não? Naquelas condições… Eu digo falecer: naquelas condições! Acho que traduziria um sucesso, uma redenção para vidas sofridas, um final em grande para um artista, um final em beleza para uma Kardashian, uma clausura sofisticada para um snob. Numa espécie de Última Ceia em movimento, pediríamos ao motorista que sintonizasse na Antena 2, aumentasse o volume e baixasse o vidro de modo a entrar um ventinho no autocarro e, envolvidos pela frescura, suspiramos gratidão junto ao seu ouvido para o aquecer tanto quanto o seu tórrido coração. Com delicadeza sugerimos, isto se o vento não o impedisse de ouvir “Agora, lentamente, vá-se desviando para a sua direita e enfaixe-se rail adentro.”

 

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