Entre as muitas perguntas que os jornalistas me fizeram na celebração dos vinte e cinco anos de Episcopado, houve uma que me surpreendeu: como vai a cultura em Vila Real. Tal facto aconselha a trazer para aqui a notícia comentada das conferências realizadas no Arquivo Distrital, desde o dia 17 ao dia 20 de Outubro.
A organização daquelas conferências nasceu da preocupação de não reduzir a celebração jubilar a um solene acto de culto, ainda que solenizado pela presença de muitos bispos. O mesmo motivo esteve já na criação da «Travessia», um oratório musical onde se conjugam literatura e música vocal, coral e instrumental.
De facto, a fé católica, que tem no culto a sua expressão maior, foi sempre matriz geradora de múltiplas expressões culturais desde a arquitectura, escultura e pintura, até à música e arte literária (romance, poesia e teatro). O próprio culto católico, mesmo na sua forma mais simples, supõe alguma informação cultural e recursos artísticos, como a leitura correcta, a música, a movimentação regulada, o uso de símbolos. Um culto sem alguma cultura dos fiéis será redutor da fé e fragiliza a própria expressão do culto, impedindo os fiéis de penetrarem no âmago da liturgia. Situação análoga se verificará numa cultura sem culto, uma construção inacabada do espírito humano. Nunca houve nenhum povo cuja cultura não incluísse a expressão religiosa. Tentou-se isso na Europa do século XX, e a mística religiosa que devia ir para Deus concentrou-se nos regimes políticos, endeusando-os, acabando por fazer ir pelos ares o substrato ideológico e militar: era carunhoso.
Entre nós, as expressões do culto católico andam bastante prisioneiras do «útil»: missas pelas almas para alcançar ajudas nas dificuldades; festas dos santos para distrair e fazer negócio de cantadores; promessas aos santos quase em forma de contrato espiritual; bênçãos de lugares, mesmo na ausência dos utilizadores, para que a vida corra bem; celebração dos sacramentos para dar sorte. O mundo interior desses devotos é ocupado pelo sentido das vantagens terrenas, como faziam os antigos romanos ao realizar os ritos legais. Logicamente, esta mentalidade utilitária do culto não cuida de adquirir cultura para entender e melhor viver o mistério de Deus, acabando por levar os devotos a recorrer a outras «fontes religiosas» quando as primeiras «falham». É por isso que, ao lado das igrejas, se vê crescer toda a espécie de conselheiros espirituais, adivinhos, tarotes, enxotas, espíritas, seitas e benzedores que dizem garantir «vantagens e curas». Em contrapartida, as escolas de catequese e os cursos de formação teológica dos leigos e de diálogo interdisciplinar não vingam, a não ser na medida em que sejam «úteis», proporcionando perspectivas de emprego futuro. É certo que as horas de crise económica obrigam as pessoas a concentrarem-se nas necessidades primárias. O perigo é não saírem disso.
A organização daquele ciclo de conferências teve, portanto, como objectivo proporcionar aos vila-realenses um espaço cultural interdisciplinar sobre «Jesus Cristo» por ser um tema indissoluvelmente ligado ao ministério de um bispo e um tema recorrente nos meios culturais. Haja em conta o filme recente sobre «A Paixão», o livro do «Código da Vinci» e já antes o de Saramago, e com precedentes na literatura e história dos séc.XIX e XX, desde E.Rénan e seus reflexos em Eça de Queiroz aos nossos Miguel Torga, Teixeira de Pascoais e Guerra Junqueiro.
As conferências, sob o título genérico de «Dizer Jesus Cristo hoje», dividiram-se em três áreas: o «ambiente histórico» em que Jesus viveu, o «mistério pascal de Jesus» e «Jesus na arte», prolongada depois na mesa redonda sobre a «expressão religiosa em escritores transmontanos» (seriam seleccionados Miguel Torga e Guerra Junqueiro») e em «algumas obras de arte transmontana».
O primeiro orador, Dr. Geraldo Coelho Dias, fixou o seu trabalho no problema de «Jesus histórico» e lembrou que os textos que possuímos sobre Jesus não pretendem fazer um relato jornalístico ou biográfico, como hoje se desejaria, mas testemunhar a mensagem vivida pelas primeiras comunidades cristãs. Esses textos são textos históricos relativos a essas comunidades e à pessoa de Jesus que neles aparece como «alguém que não cabe nos limites humanos». O Jesus histórico é esse Jesus «escandaloso» pelo excesso da sua personalidade. É um abuso científico retirar esse aspecto «sobre-humano» de Jesus para ele caber nos nossos esquemas humanos como se «o excesso» sobre-humano fosse criado pelos seus discípulos. Um «Jesus sem divindade» é que é uma construção do preconceito racionalista. Foi exactamente o «excesso» de Jesus que chamou a atenção dos Apóstolos e dos historiadores não cristãos, pois um Jesus igual a outros profetas não surpreenderia judeus nem romanos.
No diálogo que se seguiu, referiu-se que os textos evangélicos falam de Jesus como alguém «datado» no espaço e no tempo e não à maneira dos heróis míticos que «viajam acima do tempo e do espaço históricos». Falou-se dos «manuscritos de Qumram» ou do Mar Morto como textos relativos a um grupo de «judeus resistentes da espiritualidade judaica» e não ao cristianismo, a não ser pelo contraste que proporciona entre as duas espiritualidades; falou-se dos evangelhos apócrifos como textos marginais desejosos de preencher as curiosidades humanas que os Evangelhos canónicos não satisfazem, sobretudo acerca da infância de Jesus, com muitos milagres pelo meio; e falou-se também da literatura gnóstica, muito tardia em relação aos acontecimentos históricos de Jesus e empenhada em defender posições filosóficas heréticas. Afirmou-se que a ressurreição de Jesus «não é um facto histórico» no sentido de haver sido visto por alguém ou poder ser testado por tecnologias mas é histórico no sentido de «haver pessoas saudáveis que testemunharam haver tido uma experiência espiritual com Jesus vivo após a sua morte». Lembrou-se que a ressurreição é uma novidade total em relação à «reencarnação oriental» ou à «ressuscitação» de Lázaro ou «vivificação» de pessoas em estado de coma.
O segundo orador, Dr. António Couto, arrastou ao Arquivo um grande número de pessoas para o ouvir falar do «mistério pascal». «Mistério pascal» é diferente da informação sobre os aspectos sociais e jurídicos acerca da responsabilidade da autoridade judaica e romana no processo da morte histórica de Jesus (questão subjacente ao filme da «Paixão»). Quando se fala do «mistério pascal de Jesus» fala-se de algo mais que o processo jurídico e histórico, é algo que pertence ao mundo da fé e só na dinâmica da fé se entende plenamente». É a reflexão sobre o dinamismo espiritual que nos envolve a nós, não permitindo ser olhado por mero turista, mas só por quem o comunga»
No diálogo posterior, à pergunta se a leitura feita nasce do texto ou é mera reflexão espiritual, foi dito que nasce do texto neo-testamentário desde que lido com mais rigor do que a leitura histórica que é habitual fazer-se. À observação de que há na história da cultura «relatos míticos de deuses» semelhantes ao processo de Jesus, respondeu-se que essa semelhança é somente exterior, estando o caso de Jesus datado e localizado historicamente e revela que o espírito humano aspira por algo profundo que só Deus sacia. Observou-se ainda que, para muitos cristãos, a Páscoa é mais a morte dolorosa que a transformação gloriosa, mais a sexta-feira que o Domingo, mais o fracasso histórico que o triunfo, havendo ainda quem seja mais sensível ao Natal que à Páscoa, o que arrasta consigo um tipo de cristianismo devocional, sem Domingo. Sobre a centralidade do mistério pascal na vida de Jesus e no texto bíblico, lembrou-se ainda que basta folhear os textos dos Evangelhos para ver o espaço que neles ocupa o relato da Páscoa, sendo o texto da infância uma introdução e dois evangelistas nem falam da infância.
*Bispo de Vila Real