Quinta-feira, 10 de Outubro de 2024
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Desastre na ponte de Misarela

De vez em quando, somos surpreendidos por terríveis acidentes que nos chocam. Acontecem desde sempre, em qualquer lugar e em qualquer altura. Uns acontecem por manias de alguém (Nero mandou incendiar Roma) outros por razões explicáveis apenas pelas circunstâncias da Natureza (o terrível sismo na Turquia e na Síria que matou até agora – muita gente ainda está sob os escombros dos prédios que ruíram como baralhos de cartas - mais de quarenta mil pessoas).

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A nível mais restrito, os grandes desastres também causam a tristeza e o luto. Todos estarão recordados do acidente de Entre-os-Rios, em Castelo de Paiva, com o desmoronamento de uma ponte quando sobre ela seguiam pessoas e viaturas, incluindo um autocarro. Mas, provavelmente, já não será recordado por ninguém (salvo os familiares das vítimas dessa tragédia) a queda de uma carrinha ao rio Cávado, depois de derrubar o parapeito da ponte da Misarela, em Vila Nova / Ferral, no concelho de Montalegre.

Eram 19.30 horas, quase noite, do dia 11 de fevereiro de 1988 (há 35 anos bem medidos). Uma carrinha com doze estudantes muito jovens deslocava-se para Fafião /Cabril, terminadas as aulas daquele dia da Escola COOP de Misarela, indo ao volante, numa estrada que já percorrera tantas e tantas vezes, o motorista (de 45 anos de idade)  Guilherme Marinho, de Ferral, contratado pelo Município barrosão para essa tarefa que tinha lugar duas vezes ao dia: de manhã e ao fim do dia. As condições atmosféricas estavam ruins (como costumam estar nesta altura). Nesse tempo não havia “alertas amarelos nem vermelhos” da Proteção Civil nem eram necessários: todos os transmontanos da região do Alto Tâmega conheciam bem os termos em que o inverno se processava. Nesse dia 11 de fevereiro, estava chuva e vento que chegava a fazer oscilar a viatura. 

Nove dos jovens ali pereceram. O motorista também morreu

A escola ficava num sítio alto. A estrada era íngreme, estreita, com muitas curvas. Nada propícia a altas velocidades. E o senhor Guilherme era cuidadoso, sabia disso e da importância que tinha conduzir tanta gente nova. Na viagem anterior, andara pelas freguesias de Xestelo, Azevedo, São Lourenço e Chelos a recolher os rapazes e as raparigas, como sempre. Tinha corrido tudo bem pelo que nada fazia pressupor uma tragédia daquela dimensão. 

Mas houve uma questão que veio a ser notada depois: a carrinha era de nove lugares mas conduzia treze estudantes. E, sentados ao lado do motorista, seguiam três jovens (curiosamente, foram os que sobreviveram ao acidente): o Adérito (14 anos), o Eugénio (12 anos) e o Manuel António (17 anos). O Adérito, todavia, perdeu a irmã na tragédia.

“Foi depois de fazer a curva da ponte de Misarela, sobre o Cávado, que o furgão, guinando para a direita, acabou por derrubar o frágil parapeito da ponte, precipitando-se nas águas do braço da albufeira da barragem de Salamonde, em autêntico turbilhão. Ao cair no rio, o furgão bateu num enorme penedo”. (Gomes de Almeida, em “Jornal de Notícias”, de 12 de fevereiro de 1988)

“Não sei como foi, mas, às tantas, acabei por sair pelo vidro da frente”

Era noite e o tempo não amainara

Pouco se poderia fazer na ocasião. Era noite e o tempo não amainara. Começaram a concentrar-se pessoas nas margens, alertadas pela falta da carrinha e dos alunos nos respetivos domicílios.

“Não sei como foi, mas, às tantas, acabei por sair pelo vidro da frente. Nadei para a margem, subi o talude e dirigi-me para a ponte onde também já estavam o Eugénio e o Manuel António que tinham sido “cuspidos” da carrinha. Pusemo-nos a gritar, pedindo socorro”. (Adérito Martins Gonçalves, um dos alunos sobreviventes)

Apareceram logo funcionários da central elétrica de Vila Nova da EDP que evitaram que a furgoneta fosse levada pela correnteza do rio, lançando um cabo à carrinha e, com um pequeno guindaste rebocando-a para terra. Mas nem um corpo sequer se encontrava dentro dela, ao contrário do que esperavam. Bombeiros chegaram ali mal souberam o que tinha acontecido. Mergulhadores de Braga vieram a seguir, preparando as coisas para resgatar corpos mal o dia amanhecesse.

“Para lá da sinistra ponte, há um constante peregrinar de pessoas que mais parecem vultos sombrios no meio de tanta tragédia. Num espaço de 200 metros, nada menos de cinco cadáveres – cinco corpos que homens-rãs de Braga lograram retirar do rio, na manhã seguinte. Junto de cada corpo, um velório de circunstância, uma estação de um calvário sem fim”. (Gomes de Almeida, ibidem)

Pequenas coisas que podem gerar grandes desastres

Uma braseira acesa sem vigilância pode causar um incêndio. Um tropeção numa valeta pode causar gravíssimas consequências a caminheiros que andem sozinhos num trilho menos frequentado. Uma tontura seguida de queda numa arriba do mar pode fazer desaparecer um pescador desportivo. Um bico do fogão aberto com fuga de gás pode causar uma explosão. O escorregão no sabonete numa banheira pode causar um dano tremendo a quem nela caia. Um segundo de distração pode matar por afogamento uma criança, num tanque ou numa piscina. A condução arriscada e despreocupada de um condutor pode matar o tratorista.

Neste caso, ocorrido em Vila Nova de Ferral, um dos alunos sobreviventes explicou como dois pequenos descuidos do condutor podem ter sido responsáveis pelo drama que ali se viveu:

“Antes de partir, o senhor Guilherme esteve a tirar gasóleo da carrinha, em frente do Café Transmontano, para o carro de outro colega que também faz transportes para as escolas. Ficou por isso com gordura nas mãos. Ao entrar para a carrinha, limpou-as com desperdícios, mas não as lavou. A gordura não terá desaparecido toda. Não andámos mais que um quilómetro até que chegámos à ponte. O motorista fez a curva bem mas, depois de a ter feito, virou-se para trás para falar com o Fernando. Quando olhou para a frente, ao ver que estava na ponte e que a carrinha se estava a despistar, deu uma guinada, mas o volante fugiu-lhe e acabou por ir de encontro à vedação. Ele tentou endireitar a direção, mas não conseguiu”.

Eugénio (11 anos na altura), Nuno (17), Aida (14), António (14), Elisabete (12), Mário (15), Beatriz (14),  Vítor (12) não tiveram tempo de chegar a adultos, de constituir novas famílias. Eles e elas andariam agora entre os  50 e os 52 anos de idade. Se vivesse, o motorista Guilherme Marinho teria hoje 80 anos. Sobreviveram: Paula (14 anos), Manuel António (17), Fernando (16) e Adérito (14).

Outros dramas de “outra” ponte de Misarela

Há quem diga que a “Ponte de Misarela”, no Barroso, no concelho de Montalegre, é a “Ponte do Diabo”. Que terá sido erigida pelo demónio, numa noite só, naquele local algo assustador, entre duas margens alcantiladas de um veio de água.
Esta ponte de Misarela sempre foi um lugar de desesperos e de súplicas. A ela se dirigiam mulheres impedidas de terem filhos, acompanhadas pelos cônjuges (legítimos ou não) que pretendessem ter uma “Senhorinha” ou um “Gervaz”, condição imposta para que a criança pudesse vir a nascer (“Se for menina será Senhorinha; se for rapaz será Gervaz” – dizia-se). E o casal ali esperava o tempo que fosse necessário, dia ou noite, até que ali passasse um homem que apadrinhasse o pedido, tirando água do rio num balde seguro por uma comprida corda e com ela massajando ao de leve o ventre da mulher, para que pudesse engravidar. Sem esse padrinho também “nada feito”. Não será difícil perceber porque há tantas Senhorinhas e tantos Gervásios em terra do Barroso …

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