Domingo, 3 de Novembro de 2024
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Os desafios e riscos da descarbonização

As alterações climáticas são uma realidade incontornável e colocam grandes desafios à sociedade, que tem de agir para minimizar o impacto que elas trazem ao planeta. Neste contexto, torna-se evidente uma ação urgente e concertada entre os diversos atores, que precisam de ter um papel preponderante na transição para uma sociedade descarbonizada, através da construção e desenvolvimento de soluções, que na sua génese promovam resiliência, inovação e sustentabilidade.

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João Cabral, coordenador científico do Laboratório de Ecologia Fluvial e Terrestre, da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro (UTAD), reconhece que as alterações climáticas “são um processo incontornável”. Por isso, considera que, mesmo suspendendo todas as fontes poluidoras, nomeadamente os gases com efeito de estufa que contribuem para o aquecimento global, as alterações climáticas “são uma realidade com a qual teremos de lidar, porque entre a resposta àquilo que são as nossas atividades e a resposta do planeta, há um desfasamento. Ou seja, o que vamos estar aqui a suportar, é resultado do que fizemos nos últimos dois séculos”.

O também especialista em ecologia revela que a transição energética traz muitos desafios, numa sociedade e economia ainda “muito suportadas pela energia fóssil”. “O planeta tem de ser encarado como um desígnio global. Se continuarmos com as mesmas práticas, é inevitável que estamos a caminhar para algo desconhecido. Se tivermos a capacidade de mudar essas práticas na origem, em que a questão energética é central, as gerações futuras poderão ter um horizonte menos sombrio”.

ENERGIAS RENOVÁVEIS

A descarbonização é um imperativo global que tem de ser abraçado pelos governos mundiais. E aqui a transição energética “é mesmo central para reduzirmos as emissões para a atmosfera”, sublinha João Cabral, adiantando que Portugal tem dado cartas na liderança para reduzir as emissões de carbono.

No entanto, alerta o investigador, todas as fontes de exploração de energia renovável têm as suas infraestruturas associadas. “Neste âmbito há um aspeto que, politicamente, não é interessante, que tem a ver com o facto dessas infraestruturas terem na sua origem a energia fóssil, quer na sua construção, quer nos componentes e nas acessibilidades”. Ou seja, “quando começam a laborar não são infraestruturas limpas, têm um passivo, uma fatura que têm de compensar. Depois, a sua existência real no território tem outro conjunto de impactos que devem ser balanceados para se perceber que a aposta em determinadas ocasiões faz ou não sentido”.

“A UTAD tem trabalhado em medidas compensatórias de minimização,
que tentam equilibrar aquilo que é
a disrupção dos ecossistemas naturais”

IMPACTOS

A construção de barragens e parques eólicos tem sempre impactos nos territórios, que devem ser compensados por isso mesmo.

Segundo João Cabral, há, desde logo, um conjunto de impactos diretos. “Por exemplo, o caso dos parques eólicos. É conhecida a mortalidade que causa em aves e morcegos. Este é um impacto direto, mas há os indiretos, que têm a ver com o efeito barreira ou exclusão.

Ter parques eólicos ou uma barragem faz com que haja uma grande barreira ou mesmo a exclusão de muitos organismos, que precisam de transitar e evitam aquelas zonas, porque não conseguem ultrapassá-las. Outro aspeto importante é que muitas das serras onde foram instalados parques eólicos, que eram refúgio para espécies emblemáticas, como o lobo ibérico ou a águia real, foram alteradas”.

As serras estão agora cheias de estradões e as pessoas podem, facilmente, aceder a essas zonas, o que significa que a “pressão humana aumentou muito”.

Há ainda os impactos cumulativos que dizem respeito à coexistência, no mesmo território, de diferentes infraestruturas, que podem ser da mesma tipologia (parques eólicos ao lado de parques eólicos), mas a coexistência dessas infraestruturas com as barragens, estradas, linhas elétricas, “tornam o território bastante fragmentado”, sustenta o especialista.

Sem beliscar o desígnio da transição energética e da descarbonização, João Cabral refere que no discurso temos de ter todas essas componentes, exemplificando com a chacina de veados numa Quinta da Torre Bela, perto de Lisboa. “Foi um processo de desocupação daquela área, que passou pela desmatação e limpeza, para se criar um enorme parque fotovoltaico. Agora, se pensarmos que aquela mata tinha uma capacidade sumidora de carbono que foi desmantelada para colocar lá uma infraestrutura, isso tem de ser muito bem explicado. Será que vale a pena?”

VALEU A PENA

No exemplo concreto daquela mata, ela “tem carbono incorporado na sua biomassa e na sua cadeia alimentar, que não está na atmosfera. Ali está a ser colocado um parque fotovoltaico, que irá produzir energia sem emissão de carbono, mas perdeu-se a capacidade de fixação de carbono. E é isto que tem de ser explicado”, porque “já sabemos que a exploração de energia renovável é um negócio, mas essa vertente não pode ser a única nesta avaliação”. Pelo que, há muito anos, a equipa do Laboratório de Ecologia Fluvial e Terrestre da UTAD “tem trabalhado em medidas compensatórias de minimização, que tentam, de alguma forma, equilibrar aquilo que é a disrupção dos ecossistemas naturais”.

Já no caso das barragens, com vigências de um século, “vão marcar de tal maneira a paisagem e o seu funcionamento que é preciso perceber quais são aquelas realmente necessárias para a produção hidroelétrica e para reservatórios de água, e aquelas que não são prioritárias, uma vez que a atividade e a vida dos seres humanos só são viáveis num enquadramento de ecossistemas que funcionem”, frisa, acrescentando que a preocupação da UTAD “é perceber, caso a caso, se o balanço está bem feito e se não estiver, poder restringir essa pressão, porque são infraestruturas que têm uma duração de muitos anos”.

“Não podemos ficar rodeados
de ecossistemas que não funcionam e que são profundamente alterados”

ÁGUIA REAL

Exemplificando com a águia real, a UTAD fez uma monotorização à sua nidificação, tudo porque esta é uma ave emblemática da serra do Marão. “Até 2003 havia indícios de nidificação, após essa data nunca mais teve. Coincidentemente, em 2003 foram construídos três novos parques eólicos naquela zona. Não há aqui uma evidência científica de que uma foi a causa e outra a consequência, mas temporalmente essa coincidência existe”, refere, adiantando que os valores “são difíceis de medir”.

“Se falarmos de ecossistemas e espécies ameaçadas, a perceção pública é vaga mas se falarmos de oportunidade de emprego, que tem um retorno momentâneo para os territórios, como ficou evidente com as barragens, a perceção é diferente”. No entanto, “não podemos ficar rodeados de ecossistemas que não funcionam e que são profundamente alterados, porque tem repercussões a todos os níveis, não só como sumidor de carbono, como também na capacidade de produção de oxigénio, na polonização, na qualidade da água. Tudo isto tem repercussões diretas na vida das pessoas”.

INCAPACIDADE

Perante os fenómenos extremos a que se tem assistido um pouco por todo o mundo, João Cabral lembra que “nada disto é novo”, uma vez que aquilo que estamos a viver” já estava previsto há décadas e com um rigor assustador, suportados por modelos matemáticos muitíssimo robustos”. No entanto, “não foi tido em consideração, nem teve atenção nenhuma, devido à incapacidade dos decisores políticos a nível global”.

O investigador defende que a decisão “tem de ser antecipativa”, mas, “se calhar, não dá os votos que se desejaria”. Apesar de tudo, pela primeira vez, os acordos de Paris juntaram à mesa os maiores poluidores do mundo, Estados Unidos e China, porque sabem que “se não fizerem nada, vão ter consequências desastrosas para as suas economias”.

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