Sexta-feira, 26 de Julho de 2024
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Serenidade

É a palavra que me ocorre para definir a atitude do Papa na recente visita à Turquia. Nem medo nem arrogância, mas a fortaleza serena de quem sabe o terreno que pisa e responde a um convite. O Papa manteve na Turquia a fidelidade à sua missão, a robustez do pensamento e a sua maneira […]

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É a palavra que me ocorre para definir a atitude do Papa na recente visita à Turquia. Nem medo nem arrogância, mas a fortaleza serena de quem sabe o terreno que pisa e responde a um convite. O Papa manteve na Turquia a fidelidade à sua missão, a robustez do pensamento e a sua maneira de ser. As pessoas foram descobrindo a verdade das suas palavras e os seus objectivos.

As palavras e gestos do Papa movimentaram-se em duas direcções: o diálogo com as autoridades civis turcas e o diálogo com as autoridades religiosas (muçulmana e cristã ortodoxa). Às primeiras disse que a Turquia deve praticar uma verdadeira laicidade do Estado e dar liberdade aos vários grupos religiosos existentes na comunidade turca (o que não acontece, assumindo o governo um ramo do Islamismo e dificultando a vida de outros grupos e dos cristãos); às autoridades muçulmanas disse que devem viver fielmente a sua fé, aceitando o diálogo razão-fé (o que também não se faz, afeiçoados apaixonadamente às suas tradições religiosas e marginalizando as outras), e ao patriarca cristão ortodoxo de Constantinopla exprimiu a mais leal vontade de prosseguir o diálogo ecuménico em ordem à desejada unidade cristã.

A mensagem central de tudo isto é a mesma que o Papa deixou na universidade de Ratisbona e transmitiu em 25 de Setembro passado aos diplomatas de países muçulmanos acreditados no Vaticano: «o diálogo inter-religioso e intercultural entre os cristãos e os muçulmanos não pode reduzir-se a uma opção ocasional. Ela constitui uma necessidade vital, da qual depende em boa parte o nosso próprio futuro». O Ocidente tem de evitar o excesso de razão tecnicista e positivista que expulsa a dimensão religiosa e torna o Ocidente suspeito aos povos religiosos, e o Oriente tem de evitar o excesso apaixonado de uma religiosidade que não conhece a razão e gera comportamentos violentos contra o Ocidente.

A Turquia é um país charneira porque tem um bocado de tudo. Os turcos não são árabes, descendem de uma raça do Extremo Oriente conquistou há séculos a região que é hoje a Turquia e converteram-se à religião islâmica. Para fazer esquecer todo o passado cultural da região, deram nomes novos a toda a geografia (que se chamava Anatólia, Ásia Menor, Galácia, Ponto) e às cidades antigas como Constantinopla ou Bizâncio que passou a chamar-se Istambul (bela) e às terras que conhecemos dos tempos apostólicos (Éfeso, Esmirna, Laodiceia, Sardes, Mitilene, Niza, Capadócia, etc), hoje com nomes turcos totalmente diferentes. A Turquia apresenta-se oficialmente como uma República laica, desde 1923, pondo termo ao califado de um sistema de governo islâmico, típico do império otomano. Ao criar essa República laica o fundador procurou travar o fanatismo de alguns grupos islamitas. Mas na prática o governo actual apoia e favorece uma certa corrente islamita, hostilizando tudo o mais. Para isso, criou a «Dyanet» ou instância política com 100.000 funcionários que controlam as 75.000 mesquitas e o que lá se ensina e todos os outros cultos, incluindo o cristão. Dentro do islamismo há muitos grupos que são hostilizados, como é o caso dos Alevitas, islâmicos que representam cerca de 20% da população e são muito mais abertos: não defendem o uso do véu, nem a guerra santa, rezam em grupos mistos, e aceitam a exegese do Alcorão, sendo por isso vistos como inimigos da identidade turca e não têm mesquitas. Por sua vez, os poucos católicos não podem adquirir propriedades, nem construir igrejas, nem abrir seminários. Mesmo os cristãos ortodoxos sentem enormes dificuldades. O patriarca Bartolomeu I de Constantinopla há anos que não pode celebrar em Demre, terra de S. Nicolau: o Estado considera essa igreja local como um museu, sendo necessária uma autorização oficial, que não é dada.

Por tudo isto, nem o poder político turco pratica uma sadia laicidade do Estado, respeitadora da liberdade religiosa dos cidadãos, nem o povo sabe distinguir «ser turco» de «ser islâmico», havendo mesmo grupos islâmicos que não desejam a entrada na Europa com medo de perderem essa identidade islâmica.

Esta mistura de laicidade estatal e intransigência de grupos islâmicos prolonga-se na rejeição do diálogo fé e razão no interior do Islão. O Islão não admite a exegese do livro Alcorão e, quando fala do Cristianismo, dá às nossas palavras um conteúdo muito diferente do que elas significam, tornando-se por isso indispensável um real diálogo de ideias e de conceitos, e não somente gestos de simpatia. É que, por estranho que pareça, a ideia que temos de Deus acaba por gerar uma antropologia, uma ética e um tipo de relações humanas. Certamente que o Papa tem pela Turquia verdadeira estima, o que não significa concordância com a mentalidade vigente, e por isso disse o que disse em palavras concisas e gestos delicados.

Pode perguntar-se se a presença de turcos na Europa ajuda o Papa no seu esforço por afastar da Europa o seu laicismo militante e a anarquia de costumes? Por estranho que pareça, isso é possível. Na citada audiência ao corpo diplomático, Bento XVI disse: «Quando aumentam as ameaças contra o homem e contra a paz, reconhecendo o carácter central da pessoa e, trabalhando com perseverança para que a sua vida seja respeitada, cristãos e muçulmanos manifestem a sua obediência ao Criador, o qual deseja que todos vivam na dignidade que Ele lhes concedeu». Os muçulmanos mantêm, de facto, um profundo sentido religioso da vida, o respeito pelo Criador (em contraste com uma Europa laicizada que tudo analisa numa perspectiva tecnicista e positiva), e são firmes na defesa de valores naturais como a sexualidade heteróloga, a condenação da homossexualidade e a estima pela vida humana.

 

* Bispo de Vila Real




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