Antes disso acontecer (o primeiro sinal da guerra que viria aí fora dado por Nehru, ao invadir e anexar os territórios de Goa, Damão e Diu, na Índia) houve lugar a um acontecimento que deu brado em todo o mundo: capitaneado pelo capitão Henrique Galvão, militar português que se divorciara da ideologia e atividade política do salazarismo, um grupo de homens (portugueses e espanhóis) atacou, sequestrou e modificou a rota de um paquete de luxo português (o “Santa Maria”) com a sua tripulação e as centenas de passageiros que nele seguiam. Foi nos meses de janeiro/fevereiro desse ano que tal aconteceu. Há 63 anos. Oportunidade para relembrarmos aqui o ato e os seus principais intervenientes.
“O Santa Maria entra no porto de La Guaira, na Venezuela, às oito horas da manhã, com a sua tripulação de 350 homens e está marcado para sair à meia-noite, com cerca de 600 passageiros a bordo”.
Henrique Galvão, em “O assalto ao Santa Maria”, livro por si escrito
“Operação Dulcineia” para denunciar a ditadura salazarista
A ação política que desafiou a proverbial vigilância das autoridades portuguesas foi demoradamente planificada, mas as dificuldades para a levar a cabo foram, obviamente, muito contrariadas por vários fatores. Para além do sigilo e do cuidado nas movimentações dos que iriam estar implicados, havia necessidade de recorrer a serviços exteriores (entre os quais a aquisição de armas), contactar pessoas de confiança (mais tarde, Henrique Galvão denunciou algumas “traições” de alguns que lhe tinham prometido apoio) e potenciais colaboradores portugueses e espanhóis, celerados do franquismo que combatiam o generalíssimo chefe do governo de Espanha (sobretudo elementos de uma força clandestina, a DRIL que reunia o Movimento Nacional Independente e a União dos Combatentes Espanhóis). De Portugal, sabia-se do apoio do general Humberto Delgado a que Henrique Galvão se subordinava e a quem dava continuadas indicações sobre a estratégia a seguir no possível golpe. Mas não havia conhecimento de ligações fortes a partidos ou movimentos políticos.
“Estava a tornar-se claro que a nossa única possibilidade de êxito era recorrer a formas de ação que fossem buscar a sua eficácia à surpresa do choque e à originalidade do processo”.
Henrique Galvão, idem
Assaltantes no navio como passageiros
O mais difícil, no entanto, para uma eficaz planificação do ataque, foi reunir verbas. O dinheiro era escasso para levar a cabo tão grande e minucioso golpe. A solução seria seduzir milionários descontentes com as políticas do regime. Mas havia entre estes quem receasse apoiar o ataque a um paquete com seis centenas de passageiros cuja vida poderia ser posta em perigo. O capitão Henrique Galvão prometia que, se as coisas corressem como o planeado, não haveria um único tiro, a segurança do paquete seria garantida por uma tripulação alternativa e o respeito pelos passageiros seria um ponto de honra.
Outra questão essencial era o apoio aguardado do Brasil para onde o grupo levaria, depois da ação revolucionária, o navio Santa Maria (durante a ação, Galvão crismara-o de Santa Liberdade). A Max Olivier-Lacamp, jornalista do “Le Figaro”, Delgado e Galvão explicaram a razão de ter sido tão demorada a decisão em atacar o navio, sabendo-se que estava preparada para o mês de setembro de 1960: “As circunstâncias políticas não favoreciam. Juscelino Kubischek de Oliveira ainda era o presidente brasileiro e como era defensor das ditaduras ter-nos-ia entregue”.
Em 21 de janeiro de 1961, Galvão e os seus homens que se apresentaram como passageiros do barco entraram, misturados com estes e com a tripulação que não podia imaginar o que iria seguir-se:
“Eu estava emocionalmente agitado, não pelo medo de ser apanhado ou pelo resultado incerto do nosso golpe em perspetiva. Sentia, instintivamente, que uma vez tendo conseguido entrar a bordo seríamos certamente capazes de ocupar o navio. Apoderou-se de mim uma sensação de alívio como se toda a minha fadiga física e mental multiplicada por catorze meses de trabalho, ansiedade, reveses, desapontamentos e exaustão se tornasse semelhante ao efeito de um poderoso veneno demasiado tempo retido no corpo e subitamente eliminado. Tudo me dava a impressão de que os fados nos seriam propícios”.
Henrique Galvão, idem
Ataque quando os passageiros dormiam
No dia seguinte, era domingo, poucas milhas após a partida do Santa Maria, Galvão deu ordem de ataque. Era 1 hora e 45 minutos. Os seus homens estavam divididos em dois grupos: um ocuparia a sala de rádio, a ponte e a casa do leme; outro atacaria o segundo convés onde os oficiais do navio e o comando tinham as suas cabinas.
A maior parte dos passageiros dormia e não se apercebeu do que estava a acontecer.
Foi então que a inesperada reação de um oficial que estava na ponte (“o único indivíduo corajoso e varonil que encontrámos entre os 350 membros da tripulação” – diria, depois, Henrique Galvão) motivou uma troca de tiros resultando a morte desse oficial, João José do Nascimento Costa, o qual veio a ser a única vítima mortal desta ação.
Piloto reage e é morto
Em 24 de janeiro, o “Diário de Lisboa” dava conta da morte do piloto, salientando até o facto de a sua mulher ter dado à luz a filha Cristina, oito dias antes, quando o pai estava embarcado, pelo que este não chegou a conhecê-la.
De Nascimento Costa referiu Henrique Galvão: “Foi este oficial que caiu nobremente no cumprimento do seu dever – embora este fosse oposto ao nosso – que provocou o choque. Todos nós lamentámos a sorte deste homem corajoso que tentou defender a sua posição e o seu navio e que pela sua conduta, em contraste com a cobardia dos seus camaradas, era certamente aquele que mais merecia viver. Morreu em combate, como qualquer um de nós poderia ter morrido e com maiores probabilidades, visto que éramos 24 contra uma tripulação de 350”.
Comandante temeroso, assalto sem problemas
Numa publicação editada pelo governo português da altura (“A condenação pública do ataque ao Santa Maria”), a opinião era outra. Com uma gravura de Oliveira Salazar junto ao leme do navio depois de o paquete ter regressado a Portugal, um texto sem identificação de autor referia: “Foi aqui na ponte de comando que o heroico 3º piloto Nascimento Costa caiu varado pelas balas assassinas do bando de Galvão. Salazar, visivelmente emocionado, ouve a descrição do bárbaro acontecimento feita pelo comandante Simões Maia”. Sobre Mário Simões Maia, capitão da Marinha Mercante e comandante do “Santa Maria” desde 1953, também Galvão o considerou “temeroso”.
“Durante a ocupação da casa do leme junto à ponte, o telefone tocou. Atendi eu. Era o capitão a falar do seu camarote, de onde nunca saiu durante a série de acontecimentos. Queria saber o que se estava a passar. Identifiquei-me, certo que ele conhecia o meu nome e conheceria rapidamente que eu não estava a bordo em viagem de recreio. E eu disse-lhe: capitão, não se está a passar nada além do facto de eu ter acabado de tomar o seu navio. É totalmente impossível qualquer resistência e convido-o a render-se. Tive a certeza de que a operação estava concluída. O Santa Maria era nosso!”.
Desembarque inesperado
Na manhã do dia seguinte, quando os passageiros tiveram consciência do que acontecera durante a noite e ao terem conhecimento de que o navio se desviara da rota inicial, não terá havido reação aparente. Talvez desconforto e alguma curiosidade. Mas sem qualquer sinal de pânico. Havia entre elas algumas crianças que foram autorizadas a brincar no espaço infantil do navio. Mas surgiu uma contrariedade: o médico de bordo, dr. Campos Leite, afirmou que a vida de um dos dois homens feridos estava em perigo e o navio não tinha as condições necessárias para o salvar. Poderia, no entanto, ser salvo se fosse mandado para terra e tivesse aí os devidos cuidados médicos.
Referiu Galvão: “O nosso desejo humanitário de salvar estas vidas opunha-se ao desejo de salvar a operação e, possivelmente, as nossas próprias vidas. Era o sentimentalismo contra o rigor revolucionário que não podia ser complacente contra ele. Mas chegámos a uma conclusão: os dois homens feridos seriam postos em terra”.
Navio perseguido por barcos de guerra
Entretanto, a rádio de bordo manteve-se em silêncio absoluto para não poder ser revelada a posição do navio, até porque o governo português pedira ajuda aos Estados Unidos e à Inglaterra que começaram a encetar perseguição com barcos de guerra. Num ponto distante duas milhas da ilha de Santa Lucia, o Santa Maria / Santa Liberdade parou e os dois doentes foram desembarcados numa lancha a motor, com o médico e quatro homens ocupantes. Estava a acontecer o que um relato de Washington referia ser a “caça ao pirata”. Com efeito, a localização do barco estava difícil. E tentava-se influenciar o grupo de Galvão com fortes ameaças:
“O ato dos amotinados está manifestamente incluído no crime de pirataria e piratas capturados em flagrante serão condenados à morte sem procedimentos formais e enforcados no ponto mais alto do mastro principal do navio” – referiu o Departamento de Defesa de Washington.
“Chamam-nos piratas, mas estes estranhos piratas não tocaram num único centavo pertencente a qualquer indivíduo a bordo” – respondeu Henrique Galvão que perguntava ainda: “quais as origens destas notícias destinadas a virar contra nós a consciência mundial que procuramos despertar?”.
Eleição de Jânio Quadros e chegada a Recife
Até ao dia 1 de fevereiro, o tempo correu célere. Pela rádio, várias conversações e combinações foram feitas. O barco, entretanto, ancorara em frente da cidade brasileira de Recife. E chegou uma mensagem do novo presidente brasileiro, Jânio Quadros, com palavras de apoio aos revoltosos e a oferta de asilo político.
Em 2 de fevereiro, perante grande poderio naval, foi levantada âncora e o Santa Maria dirigiu-se lentamente para o porto. Os passageiros abandonaram o navio sem problemas, seguidos pela tripulação. E à uma hora da manhã do dia 3 foi assinado um acordo para a entrega do transatlântico às autoridades navais de Recife.
“Embora não nos tivéssemos rendido, o Santa Maria – que durante vários dias fora também o Santa Liberdade – já não nos pertencia. A Operação Dulcineia, assim designada desde o princípio de tudo, já não era também nossa porque a opinião internacional fizera deste caso um tema inesquecível como, de resto, desejávamos”.
Henrique Galvão
“Temos o “Santa Maria” connosco. Obrigado, portugueses”
17 de fevereiro de 1961. Avista-se ao longe a silhueta do barco Santa Maria”. No cais de Alcântara estão milhares de pessoas. O navio está coroado de bandeiras, envolto nos silvos das sirenes e cercado pelas muitas embarcações que o tinham ido esperar. Numa tribuna à vista de todos, o presidente do Conselho, o presidente da República, ministros e demais autoridades do regime que Galvão e Delgado combatiam estavam sorridentes:
“A mesma interrogação do princípio” – escreveu o jornal “O Primeiro de Janeiro”, do Porto, na sua reportagem – “O mesmo espanto pelo que víamos se mantinha: era aquele o Santa Maria aquele mesmo que suscitara tal curiosidade no mundo inteiro e servira de cenário para aquela aventura pasmosa que durante dias deu intensas horas de ansiedade à nação inteira. Fora ali que o assalto se dera, a luta se desenrolara, fora dali que haviam saído os atos e as palavras de que todos estivemos suspensos. O barco parecia simples, inofensivo, normal, em suma, e a força dramática da sua história parecia ser somente produto da nossa imaginação. E, no entanto …”.
Na apoteose da chegada do paquete em festa, foi muito breve o discurso de Oliveira Salazar ao recebê-lo:
“Temos o Santa Maria connosco. Obrigado, portugueses!”.