Nichos que eram lugares sagrados do nosso crescimento. Eram tempos em que as conversas se prolongavam e tinham por vezes magia e os fontanários eram espaços de confidências e pedidos de namoro. Havia luz nos olhares de quem falava e de quem ouvia. Havia solidariedade e litania nas rezas embaladas pelo calor das palavras. É certo que algumas noites eram mal dormidas com os cães a ladrar, os burros a zurrar e discussões provocadas pela falta de pão e pelo torpor do vinho ou pelo piar do mocho a anunciar um mau agoiro, alguém que estava muito doente ou mesmo tragédia que estava para acontecer.
Na altura o tempo até voava porque existia sempre ocupação, na rega ou no milho, na sementeira da batata ou mesmo no rebusco das uvas ou da fruta. Eram quadros bonitos de trabalho no campo onde o espírito comunitário imperava e marcava as regras saudáveis de sociedade. Na apanha das maçãs, das peras ou no lagar a dar a roda no esmagador, no machado a rachar a lenha ou pregando pregos para as casotas dos capoeiros, no amassar do pão ou no tirar do frango do fogão a lenha, tudo eram atividades saudáveis que acalentavam amizades e criavam relações de interajuda constantes.
Recordo lugares que não me saem da memória. Em casa de cada um, todos eram bem-vindos e não havia portas nem fechaduras que impedissem as pessoas de entrar.
Todos se sentavam em mochos ou num escano onde cabia sempre mais um. O vinho não faltava e era quase sempre pretexto para que as histórias se animassem mesmo aquelas em que se falava da vida alheia ou mesmo das mulheres mal comportadas, como se dizia no tempo. Mulheres mal casadas, viúvas ou solteironas, raparigas prematuramente adultas e cobiçadas. Este tipo de criaturas ia sempre à missa e a funerais, pois julgava-se que nesses lugares havia oportunidade de observarem um pequeno mundo de pessoas que também elas atuavam com o mesmo propósito. Lembrar tudo isto funciona como um regresso idílico e reconfortante ao passado, uma espécie de máquina do tempo que não volta, senão na memória.
Os cheiros e os sabores eram marcas do tempo, inconfundíveis e agradáveis. Hoje, continua a ser promissor o futuro quando lembramos esse passado tão único e inconfundível. Já não há bolos de bacalhau como os de outrora, nem pataniscas, nem ovos estrelados, nem arroz de espigos com chouriça, nem outras guloseimas tão genuínas e tão saborosas.
Hoje quase tudo é diferente e perigoso. Viver em casa é sempre um risco porque dá a impressão que a qualquer momento pode entrar um intruso com uma faca na mão ou uma pistola apontada à cabeça sobretudo nos velhos e indefesos…Rodar as chaves do portão ou da porta é quase penoso. Já não há vénia, não há saudação, apenas olhares desconfiados e matreiros. Nas ruas onde vivemos os silêncios são loucos, distantes como se as pessoas não se conhecessem, silêncios de medo, pois ninguém chama pelo nome, não existem vozes nem palavras, não existem afetos nem amizades. Os chãos estão sujos de dejetos de animais e poucos os querem apanhar com receio de beliscar o estatuto social ou porque a educação dos donos dos animais deixa muito a desejar…
Temos que olhar para dentro de nós mesmos e analisarmos o outro, não com o sentido de o criticar mas, sim, podê-lo ajudar para a transformação das sociedades e dos vários nichos das nossas aldeias. Aldeias onde antigamente se contavam histórias bonitas de adormecer e sonhar com um mundo cheio de alegria, fantasias e felicidade.
No lugar onde eu nasci ainda moram odores que brotam vida e esperança, ainda ouço no imaginário grilos que cantam e música linda que poucos a conseguem ouvir, são as saudades que aumentam à medida que os anos passam. E passam na velocidade constante do envelhecimento irreversível e do tempo que não quer olhar para trás.