Sexta-feira, 4 de Outubro de 2024
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20 de junho de 1789: “Aula de Anatomia” em Chaves

Crescem as expectativas relativamente à criação de um curso de medicina na Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro. O presidente da autarquia municipal vila-realense já deu a entender a satisfação que sente por ser possível, dentro de dois anos, a criação desse curso que é uma já antiga aspiração da UTAD, da cidade de Vila Real e da generalidade da região transmontana e alto duriense. Será talvez interessante lembrarmos o facto de a cidade de Chaves ter já possuído, há 233 anos, um curso de medicina então designado “Aula de Anatomia”, num hospital militar, na igreja de São Roque da Madalena.

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Estamos em 1777. Rumo a Madrid, num carro de cavalos, em caminho agreste e em viagem duradoura e cansativa, seguia a rainha Mariana Vitória, viúva do rei D. José. O calor apertava, o pó levantava-se à passagem da diligência, os solavancos sobressaltavam ossos e músculos da soberana que, muito próxima da “Aquae Flaviae” se sentiu desconfortável. Doente.

Na comitiva seguia um médico da Casa Real, Manuel José Leitão, conhecedor das condições em que a viagem iria decorrer, visto ser transmontano, nascido em terras de Santo Aleixo de Ribeira de Pena. De imediato, o médico (também militar) ordenou uma pausa na viagem e de carreira enviou um emissário ao Hospital Militar de Chaves aonde a rainha deu entrada para se restabelecer.

O SENTIDO PIONEIRO DE CHAVES

Segundo António Alves Chaves (chaves.antiga@sapo.pt – de 17 de abril de 2013) “Manuel José Leitão vendo o estado deplorável em que se encontrava o hospital real iniciou uma luta tenaz pela criação, em Chaves, de uma Aula de Cirurgia. Ele próprio requer a sua colocação e nomeação como cirurgião-mor da Praça de Chaves”.

Tendo o apoio da rainha Mariana Vitória, testemunha privilegiada da escassez de recursos daquele hospital, a pretensão foi oficializada após o regresso a Lisboa, mas os pares do Reino não foram sensíveis aos argumentos do médico-cirurgião. Os militares eram confrontados com graves problemas de saúde e com uma gestão pouco firme, não só havia insuficiências de serviço para os militares como para a população, despoletando assim a necessidade de criar escolas médicas novas e bem concebidas para lutar contra o alto índice de doenças e de mortalidade. Manuel José Leitão apontou de início para a criação de uma “Aula de Anatomia” em Chaves, com todas as caraterísticas de uma escola de medicina, a instalar precisamente no hospital de São Roque à Madalena, onde havia um quartel.

Duraram dez anos as tentativas do médico e militar ribeirapenense cuja pretensão ia sendo constantemente adiada. Até que, em 20 de junho de 1789, a Aula de Anatomia foi criada.
“Manuel José Leitão, em 28 de janeiro de 1789, foi nomeado Cirurgião-Mor da Praça de Chaves, não sendo desobrigado da vida militar, acumulando com as funções de professor, explicando anatomia e cirurgia não só aos ajudantes de cirurgia dos regimentos dessa praça e de toda a província e ainda aos praticantes desta arte”.

(Carlos Manuel Vieira Reis, in http: // darcordaoneuronio.blogspot.pt/ – 2006).

MANUEL JOSÉ LEITÃO

“Nasceu em Ribeira de Pena e foi o fundador da Aula Magna de Anatomia e Cirurgia que funcionou na Casa do Guarda da Madalena, ao serviço da guarnição militar, desde 1789 a 1813. Nessa altura funcionavam em Portugal quatro dessas escolas e a de Chaves foi aquela que deu mais frutos. Foram institucionalizadas por D. Maria I pelo facto de se ter concluído que o ensino, nessa altura ministrado em Coimbra e na Aula do Hospital de São José, em Lisboa, não correspondia às necessidades do país.

Manuel José Leitão foi o cirurgião-mor da Aula de Chaves durante os primeiros oito anos. Deixou dois volumosos trabalhos sobre a medicina e a cirurgia do seu tempo, tal como se praticava na Aula de Chaves”.

(Barroso da Fonte, In “Dicionário dos mais ilustres Transmontanos e Alto Durienses”, Vol. 1 – Pág. 298 – 1998).

José Manuel Leitão, médico cirurgião e militar

O QUE É UMA AULA?

O termo “aula” começou por significar “igreja, capela e principalmente o mais interior do santuário ou capela-mor onde o patrono ou titular reside e se venera, umas vezes nas suas relíquias e noutras tão somente na sua imagem ou pintura. Acha-se este termo nos nossos documentos dos séculos IX, X e XI”.

(Joaquim de Santa Rosa Viterbo– in “Elucidário das palavras, termos e frases antiquadas da língua portugueza” – 1798.

A “Aula de Anatomia” era ministrada em local recatado e interior de um hospital integrado numa igreja. No caso de Chaves, a “Aula Magna” foi criada e mantida na Igreja de São Roque, na Madalena, tendo sido extinta em 1814.

ANATOMIA

A palavra deriva do Grego (“Ana” / em partes + “Tomia” / cortar), ciência que estuda a estrutura e a forma do corpo.

Nos primórdios da existência humana do mundo sempre houve muita curiosidade em torno das caraterísticas do corpo humano. O “Livro do Genesis” revela o sentido anatómico do corpo de Adão a quem foi tirada uma costela para ser formado o corpo da mulher chamada Eva (“o início”), corpos esses que têm sido objeto de atenção para praticamente todos os pintores e artistas plásticos de todas as Eras. A História está cheia de exemplos sobre o corpo e sua repartição (a justiça salomónica, a decapitação de Maria Antonieta, o coração arrancado aos assassinos de Dona Inês, por D. Pedro e até Jesus Cristo, quando se dirige aos seus apóstolos: “Tomai e comei, este é o meu Corpo”). Mas os primeiros verdadeiros cientistas anatomistas foram os egípcios que tiveram grande relevo no conhecimento, dissecação, embalsamento e mumificação do corpo humano.

Hipócrates e Aristóteles deram impulso ao estudo do corpo num sentido mais filosófico. No século III a.C., Herófilo da Calcedónia já dissecava corpos, assim como Erasístrato de Quios (290 a.C.). Os desenhos de Leonardo Da Vinci (1452 – 1519) demonstram um profundo conhecimento da anatomia humana, mesmo fetal; e, entre 1514 e 1564, Vesalius desenvolveu tratados de anatomia patológica – as transformações do corpo por anomalias genéticas ou adquiridas.

OS CORPOS E OS LIVROS

Tal como no caso da Aula de Anatomia, a cidade de Chaves ficou ligada à feitura dos primeiros livros em língua portuguesa, sendo que, ao que é referido e conhecido, nesta cidade terão sido impressos “O Sacramental”, de Clemente Sanchez de Vercial, em 18 de abril de 1488; e “Tratado da Confisson”, em 8 de agosto de 1489. Se relativamente ao primeiro ainda haja quem afirme não haver provas concretas do facto – esta obra foi a mais lida no século XV, foi proibida pela Inquisição no século XVI, sendo queimada e, por isso, é uma obra muito rara – a segunda não oferece dúvidas quanto ao lugar onde foi impressa: Chaves detém a primazia dos dois primeiros incunábulos (“livros de origem”) da arte de imprimir, em língua portuguesa.

“A Lição de Anatomia do Doutor Tulp”, pintura de Rembrandt

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