Terça-feira, 10 de Dezembro de 2024
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Adérito Silveira
Adérito Silveira
Maestro do Coral da Cidade de Vila Real. Colunista n'A Voz de Trás-os-Montes

Na festa de Gache

Olhando para trás no tempo, deleito-me em lugares atravessados de festas e romarias, de carrosséis, de zaragatas, de tendeiros, de desordeiros, do café tingido de preto e de pó, pura água choca mas servido com carinho nos recintos …

Recordo dias quentes e noites frias em viagens até chegar às aldeias. Viagens para terras distantes do berço.

Há muitas décadas atrás, num dia de Agosto, pelas oito horas da manhã, a Banda de Música de Mateus chega a Gache. Palmilhando o percurso a pé, os músicos, cansados, são acariciados à chegada pela voz do sino que se sobrepõe por momentos à cantoria das cigarras e aos gorjeios da passarada. A marcha “ Dois Corações” arrasta uma pequena população que a acompanha durante toda a arruada. Era preciso olhar para o chão empestado de bosta ao mesmo tempo que se tocava.

À tarde, o concerto é aguardado com expectativa! Uma marcha de concerto é o mote de um conjunto de outras peças que constituíam o reportório da banda. O largo da aldeia está lotado. “Noche en Granada” proporciona momentos de encantamento e sedução.

Entretanto, no intervalo do concerto, um casal vindo de fora, bem vestido, munido de castanholas e pandeireta, exibe um salero cheio de tempero e graciosidade, conquistando animados aplausos e fortes “olés.” Depois de alguma música clássica, não muito apreciada pela população, seguem-se as rapsódias, já há muito esperadas.
“Cantar Rir e Bailar” explode. Rapidamente os dançarinos quase que voam espalhando nuvens de pó por todo o recinto. Os pares vão-se multiplicando porque a rapsódia é comprida, composta por um conjunto de temas alucinantes. No final, um ancião de bengala na mão, cigarro no canto da boca, vai junto do contramestre Pinto, toca-lhe nas pernas e diz­-lhe com ar de rufia: “Com que então vocês estavam a fingir que não sabiam tocar!” De facto, a música popular era aquela que se identificava com as tradições que já vinham de antepassados muito distantes; era a música que traduzia um estado de espírito a uma população arreigada às suas raízes e que nelas via a sua razão de ser.

Com o seu trompete, Joaquim do Pinto olha a multidão que o aplaude como se ele fosse um pequeno rei…

— Ah grande cornetim — berra uma voz levantando bem alto os braços. Os mais velhos ali estavam, a admirar a arte, não querendo perder nenhuma nota de música… os mais novos, inebriados, dançavam temas da época desejando que a música não mais acabasse.

Depois do concerto, os músicos reúnem-se no largo. Em círculo tocam um número de despedida.

Surge o insólito: José Luís Penelas, mais conhecido por Chaleco, vai no final da marcha para o meio da roda e inesperadamente toca durante largos momentos um repetitivo “chim /pum” em pratos e bombo. Todos o olham estupefactos, todos o aclamam. Ali, o nosso músico apetecia-lhe ser um solista e mostrar os seus dotes artísticos que ninguém os desdenhava. Engenhoso, acrescenta ao seu toque uma cantilena por ele improvisada cuja letra pretensamente jocosa, fez algumas mulheres mais virtuosas e castas saírem envergonhadas tapando a cara em silhuetas e trejeitos… mas o povo, esse gostou e em euforia leva o Chaleco em ombros à volta do recinto cantando uma toada bem alto quase berrada mas vitoriosa.

Gache, depois da despedida dos músicos fica banhada da cor de um entardecer calmo e nostálgico salpicado de tonalidades multicolores que permanecem por algum tempo no imaginário de todos os artistas. 

Começa a anoitecer devagar e o Sol oculta-se para além dos cumes, com um brilho de um interior profundo. As paisagens agrestes e solitárias ficam para trás num odor de estevas, de gado e de carne assada.

Na verdade, a festa só terminou quando os músicos abandonaram Gache tocados de grande alegria, enquanto desbobinavam a marcha “O Século” descendo a grande vapor os caminhos sinuosos que os haviam de levar até Mateus. 

Gache sabia que a terra era o futuro e a vida no seu reduto de geografia era possível. Ali o homem sempre foi capaz de humanizar a natureza, não se desumanizando ele. As batatas comiam-nas com casca porque as não sabiam comer de outra maneira… mas as orações tinham um valor redentor porque acreditavam na vida para além da morte… Gache recebia as bandas de música como ninguém e as aves de capoeira eram, em dia de festa, drasticamente dizimadas para satisfação dos músicos que como sempre sofriam da doença da gula…

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