Quinta-feira, 12 de Dezembro de 2024
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Adérito Silveira
Adérito Silveira
Maestro do Coral da Cidade de Vila Real. Colunista n'A Voz de Trás-os-Montes

Por dentro de um livro

Está calor e eu abro o livro deleitado no prazer da leitura…

Viver no desgosto cansa! Os cigarros, na sua poluição destroem e cansam e cansa o tocar irritante do telemóvel. Cansam as mulheres que falam desbragadamente e desdenham! Falam esbaforidas de um mundo do nada! E isso cansa, cansa…

Os políticos que roubam sofregamente enervam e cansam, bem como as viúvas que cedo ficaram sós e logo levantam as cabeças para verem algum melro ou verde-gaio, ou simplesmente alguém que queira casar… Cansam essas mulheres só de vê-las sofrer. Tudo se move imperecivelmente, sorrateiramente, matreiramente, tudo mexe e remexe no diapasão dissonante da desconfiança.

De vez em quando há vontade de não ter vontade. Há vontade de passar ao lado de tudo. No livro que leio há lágrimas porque no livro que leio, as palavras são tristes e mórbidas, assustadoras. São palavras a banir. Palavras do nosso tempo.

Ufa! Está calor. Um calor que abre as gretas da pele encarquilhada dos velhos quase defuntos que ainda procuram no fundo das tijelas os restos do açúcar derretido na escuridão das borras do café. Eles vão para a missa. Vão rezar pelos pecados que já não se lembram e que têm a ver com beijos roubados quando eram jovens… Beijos que flutuavam no ar e ficavam marcados no limbo da felicidade. Vão rezar, rezas quase sem palavras, ladainhas, litanias, toadas como canções ternas de embalar.

Dentro do livro chora-se em silêncio. Lê-se o sofrimento de crianças desamparadas, sem casa, sem família, sem esperança num mundo que é impiedoso e cruel onde respirar se torna penoso.

Sente-se um calor espúrio e inelutável. Sim, está calor e o livro continua a magoar pelo significado das palavras. Algumas dão vontade de rir! E uma sobre o ti Abílio…

O ti Abílio tinha bebido quase um garrafão de vinho tinto em poucos minutos. A festa em honra do Senhor dos Passos estava animada com uma charanga a tocar em fortes decibéis. Os ciganos e os seus cães aferroados de pulgas pareciam incitar o homem que naquele recinto queria esquecer os traumas dilacerantes por a mulher Joaquina lhe ser várias vezes infiel. O felizardo era um homem rico, chegado das terras de Belém. Irritado e bêbado, o ti Abílio salta tateando a sua sombra. Queria agarrá-la mas ela fugia-lhe. Apetecia-lhe pontapeá-la, estrangulá-la mas a sombra implacavelmente esquivava-se parecendo brincar com ele. E o homem pensou, pensou, coçando a cabeça e desistiu. O ti Abílio acabou estatelado no chão, babado de vinho mas com um sorriso rasgado, deleitado nos sons encornetados da charanga. Ao lado estava a burra de uma cigana que parecia troçar da desgraça do pobre, abanando a cabeçorra e zurrando como quem ri… A cigana, dona da burra, apresentava-se com roupa provocadora, cabelos desgrenhados e sujos e mamas quase ao léu. Ao ver assim o seu animal, ela gargalhava como uma louca. 

Ao fundo do recinto, a procissão seguia o seu curso, ouvindo-se do povo rezas dolentes penitenciadas ao Senhor dos Passos. É domingo e os sinos repenicam anunciando a missa. E o povo lá vai contemplado na fé e na pressa de beijar as mãos do padre-cura e os pés martirizados de Cristo na cruz. Está calor! E as pessoas carregadas de idade vão cumprir os preceitos cristãos até que as forças o permitam… Vão à missa em passo santo, cadência de procissão. Vão para retardarem a entrada nos lares onde em tantos se morre cedo e depressa como moscas embebedadas em vinagre. Lares onde um determinado canal é ligado de manhã à noite e os utentes são encharcados em telenovelas e programas de qualidade duvidosa, programas rascas que estupidificam a mente e o corpo se descompromete de viver. 

Está calor! Continuo a folhear entusiasmado as folhas do livro. E perdido nas horas, cedo chega a meia-noite…

No céu há labaredas que ardem nas lágrimas de crianças que gritam e que choram. A Lua cheia despeja-se em luares sobre caminhos velhos refletindo-se em sinais de esperança, porque esta não pode nunca morrer. Amanhã continuarei a ler do alto de S. Leonardo de Galafura, lugar soberbo de paisagem onde os olhos se vão deslumbrar nela e no livro que parece não ter fim.

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