No dia 14 de outubro de 1918, Vila Real ficou para sempre ligada a um herói da Marinha portuguesa, através do ato heroico de um dos seus filhos (ainda que acidentalmente nascido na cidade do Porto, por o parto que o deu à luz ter acontecido aquando de uma visita de sua mãe a familiares residentes na “Cidade Invicta”, em 1881): José Botelho de Carvalho Araújo. Ontem e hoje, o seu feito é lembrado como exemplo de bravura, coragem e pertinácia.
A chamada “sala de visitas” de Vila Real é a Avenida Carvalho Araújo. É um espaço amplo, airoso, ladeado por belos edifícios e por diversas instituições e estabelecimentos comerciais e de serviços. A sua importância sempre foi destacada. Aí se erigiram construções como o Liceu (agora Escola Secundária), o Hotel Tocaio (hoje Hospital), a Igreja de São Domingos (Sé Catedral), o Palácio dos Correios, o Seminário, o Tribunal, o Posto de Turismo e, ao fundo, permanece o palacete que alberga a Câmara Municipal. Não longe desta, em rua adjacente, uma casa de estilo afiança-nos ser aquela em que a família de Carvalho Araújo viveu.
A AVENIDA E O MONUMENTO DEDICADOS A UM MARINHEIRO
A Avenida Carvalho Araújo mantém, tantos anos volvidos na sua História, lugares carismáticos: a Toca da Raposa, a Casa de Diogo Cão, a Farmácia Galeno, o Clube Vila-realense, o Café Pompeia e a Gomes, esta com os seus covilhetes e cristas de galo. Para além da fantástica “Esquina da Gomes”, lugar de culto, de encontro, ramboia, tertúlia, autêntico “posto de observação” sobretudo o que se passa na “Bila” e ali se concentra (desapareceram, entretanto, o Teatro Avenida e o Café da Brasileira).
Com a requalificação recente da avenida, aumentou a visibilidade de dois dos seus ícones patrimoniais: a fonte e a magnífica estátua dedicada a José Botelho de Carvalho Araújo, tenente da Marinha, nascido em outubro de 1881. Viria a falecer em 14 de outubro de 1918, ano trágico para a Humanidade que viveu a I Guerra Mundial. O tenente Carvalho Araújo tombou, com outros seis marinheiros, na proa de uma canhoeira (a “Augusto de Castilho”, um caça-minas vetusto) atingida por um submarino alemão.
No pedestal da expressiva estátua de bronze de Carvalho Araújo, assinada pelo escultor Anjos Teixeira e ali implantada em 1924, pode ler-se uma inscrição que atesta a bravura dos homens da “Augusto de Castilho”, com o seu comandante à frente das operações.
SALVAR O GRANDE NAVIO E MORRER NO SEU BARCO
A ocorrência que se traduziu “numa das mais belas, mais edificantes páginas da História da Marinha de Guerra portuguesa” (cf. António Maria Zorro) foi originada pela tarefa de acompanhar, para lhe garantir segurança, o vapor de passageiros “São Miguel” que rumava aos Açores. Tarefa difícil, exigindo muita concentração e espíritos intrépidos, já que se estava em plena Guerra Mundial.
De súbito, o timoneiro deu conta que “das entranhas do oceano emergia o dorso de aço de um submarino, ao mesmo tempo que se ouvia a explosão de uma granada”, conforme a opinião de Soeiro Faria, investigador da marinha e ação naval que complementou: “Carvalho Araújo, eletrizado por extraordinária coragem perante o adversário e correndo-lhe nas veias aquele mesmo sangue dos antigos heróis marinheiros portugueses impele o navio contra o submarino atacante, ripostando de uma forma que causou assombro”.
E o comandante do submarino alemão completou: “Avistámos um grande navio escoltado por um minúsculo barco. Pretendemos saber de quem se tratava e quem nele seguia. Demos-lhe caça, mas o vapor era muito rápido. Foi então que a canhoeira que o acompanhava, notando a nossa presença, nos atacou. Era uma antiquada e mísera coisa, sem ter peças capazes de competir com as nossas e tinha uma guarnição por metade da nossa. Eu nunca vi uma luta mais valente do que aquela, sustentada por aquele velho calhambeque. Os portugueses combatiam como diabos, atirando granadas umas atrás das outras, enquanto nós os varríamos de popa à proa”.(Arnauld Perière)
António Maria Zorro, em “Morte de um herói”, numa publicação de 1990, esclarece: “Aquela antiquada e mísera coisa era o caça-minas português «Augusto de Castilho», um antigo barco de pesca” que tinha sido adaptado a “máquina de guerra” com uma metralhadora de proa e outra arma móvel a estibordo, dessa forma utilizado contra um submarino armado com seis tubos lança-torpedos e de dois canhões de tiro rápido com calibre 150 de alcance. O paquete “São Miguel”, com 206 pessoas a bordo, enquanto se travava essa luta heroica, mas desigual, conseguiu fugir à fúria do submarino alemão, recolhendo ao porto de abrigo de Ponta Delgada, ao fim de duas horas desde o início da refrega. Em dois botes, após dias e noites no Atlântico, atingiram as ilhas açorianas 35 sobreviventes que foram recebidos condignamente, semanas depois, em Lisboa.
Já depois da morte de Carvalho Araújo, atingido pela metralha inimiga, no mar dos Açores, foi divulgado um estranho documento onde o comandante do “Augusto de Castilho” referia:
“Só doidos se lembram de mandar um navio de guerra mal artilhado para regiões onde os submarinos atuam, obrigado a fazer viagem numa época de lua cheia, o que está completamente condenado nas normas para as rotas de navegação. Fica, pois, estabelecido que vou fazer uma comissão perigosa que a outro pertencia e que a minha nomeação só pode ter obedecido a perseguição política. Que sobre os autores caiam todas as responsabilidades do que possa acontecer-me”.
Carvalho Araújo era republicano e o consulado sidonista não escondia a sua predileção monárquica. Mas o então secretário de Estado da Marinha (Canto e Castro, futuro presidente da República) desmentiu a veracidade desse documento que outros, no entanto, defenderam ter sido recebido e divulgado pelo irmão do herói, Fernando.
PORTUGAL NA I GRANDE GUERRA
A participação de Portugal na primeira guerra mundial foi uma decisão difícil, porque a opinião pública estava dividida em campos opostos. Havia os que defendiam a neutralidade e os que defendiam a intervenção portuguesa ao lado dos Aliados. Os intervencionistas consideravam que essa era a única forma de quebrar o isolamento de Portugal e, principalmente, de garantir a posse das suas colónias, face às costumeiras e conhecidas ambições da Alemanha e da Inglaterra naquelas parcelas africanas sob controlo e domínio portugueses.
Em 1916, o governo de então enviou um contingente de cerca de 200 mil homens para Angola e Moçambique, possessões que tinham fronteiras com colónias alemãs. E interveio na Flandres (Bélgica), o que veio a exigir um enorme esforço militar e humano que, do ponto de vista interno, agravou as dificuldades económicas que já se sentiam antes, aumentando o descontentamento significativo da população, gerando-se maior agitação política que conduziu a uma política de “ditadura nacional” viria a ser imposta pelo presidente Sidónio Pais, então major do Exército.
“Foi essa intervenção de Portugal no conflito mundial (que custou a vida a milhares de soldados portugueses) que lhe deu, na conferência de paz do pós-guerra, o direito de ser reconhecido como país vencedor do conflito, dessa forma vendo garantida internacionalmente a posse dos seus territórios ultramarinos”. in “Clube de História Local”.
José Botelho de Carvalho Araújo
Progenitores
José de Carvalho Araújo
e Margarida Ferreira Botelho.
Nascimento
18 de maio de 1881.
Local de nascimento
São Nicolau (Porto).
Estudos
Frequentou a escola primária e o liceu em Vila Real. Fez estudos preparatórios na Academia Politécnica do Porto. Ingressou na Escola Naval, onde assentou praça como aspirante da Marinha, em 12 de outubro de 1895.
Casamento
Igreja de São Dinis (Vila Real),
em 13 de janeiro de 1906.
Cônjuge
Ester Ferreira Abreu.
Cargos
Guarda de Marinha (1903), 2º tenente (1905), 1º tenente (1915) e Capitão-tenente – a título póstumo – (1918).
Condecorações
Entre outros louvores, Medalha de Filantropia e Caridade de Socorro a Náufragos, Medalha militar de prata de comportamento exemplar, Medalha de prata do Exército português, Cruz de Guerra de 1ª Classe e 2ª Ordem de Torre e Espada.