Terça-feira, 3 de Dezembro de 2024
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Julho de 1970 – Com a morte de Salazar acabou o Estado Novo

Dizia-se sempre, nos tempos de então, que quando Salazar morresse haveria dias de feriado, muitos dias de luto oficial, autorização para os funcionários públicos poderem isentar-se aos seus trabalhos para se deslocar a Lisboa, em meios de transporte cedidos pelo Estado, para a última homenagem ao estadista. Que haveria grandes cerimónias públicas com a presença de muitos presidentes de outros países e por aí fora. Afinal, Oliveira Salazar morreu na sua residência, quase anonimamente, depois de ter passado cinco meses numa casa de saúde da Cruz Vermelha Portuguesa e passado dois anos muito fragilizado

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“Orgulhosamente sós!” – disse ele.

Ao contrário do que muitos pensariam, o funeral de António Oliveira Salazar foi simples. Havia a bandeira portuguesa sobre a urna situada num modesto armão do Exército com guarda de honra prestada por agentes da GNR a cavalo. Depois de ter passado pela então designada Assembleia Nacional e pelo Mosteiro dos Jerónimo (ali “esteve durante dois dias ao lado de Gama e Camões” – titulava o jornal “Diário de Notícias”), o corpo de Salazar dirigiu-se ao Vimieiro (terra da sua naturalidade, no concelho de Santa Comba Dão) onde foi sepultado. Acabava aí uma longa história de mais de 50 anos de um homem com origem numa educação rural, estudante num seminário durante oito anos e, depois, católico, em Coimbra, o qual viria a dirigir os destinos do país com mãos de ferro, ainda que sendo uma figura franzina, de voz sumida e agarrada aos valores que defendia, sem quaisquer concessões à modernidade e aos novos caminhos que a sociedade internacional de então estava a percorrer.

“Orgulhosamente sós!” – referiu ele um dia, após pergunta de um jornalista que o inquiria sobre a necessidade de Portugal não perder o comboio, correndo o risco de ficar só.
Quis ser o “presidente de todos os portugueses”, mas nem todos o aceitaram.
Depois de ter sido conhecida a notícia da morte de António Oliveira Salazar, a comunicação social portuguesa (muitos jornais, alguma rádio e pouca televisão) trataram-no por “Presidente”.

“Será sepultado no Vimieiro o corpo do presidente Salazar” – era o título principal na edição do dia 28 de julho de 1970 do “Jornal de Notícias”. “O Século Ilustrado”, por sua vez, publicava uma edição especial sob o mote “A morte do Presidente Salazar”. O “Diário de Notícias”, o mais laudatório de todos (mesmo em relação ao “Diário da Manhã”, jornal do regime do Estado Novo que Salazar corporizara, órgão oficial do único partido então autorizado, a “União Nacional”), referia-se a um “excelso presidente-príncipe, o maior de todos os tempos” (Salazar nunca escondeu o sentido monárquico que o formou).

Para a maior parte dos portugueses, o presidente não era Salazar, era Américo Tomás que, nesse dia, teve de interromper uma viagem oficial a São Tomé e Príncipe para regressar a Lisboa, de avião, a fim de estar presente nas cerimónias fúnebres dos Jerónimos, onde o corpo de Oliveira Salazar era velado. Todavia, sim, Salazar era presidente também, mas do Conselho de Ministros, cargo que manteve sempre desde 1933 até setembro de 1968, no dia em que tombou de uma cadeira, com gravidade. Mesmo assim, permanecendo lúcido nos tempos seguintes, ficou convencido ter continuado a governar o país, pese embora o facto de não sair de casa onde recebia inúmeras visitas, incluindo alguns dos seus ministros anteriores, e de ter sido substituído por Marcelo Caetano que prometeu a primavera depois dos custosos anos do regime salazarista. Ninguém teve coragem de dizer a Salazar que já não era presidente de coisa nenhuma. E assim ficou convencido, até ao fim.

A carta de D. António e o livro de Cardoso Pires

Oliveira Salazar foi sempre uma figura controversa, nacional e internacionalmente. Pertenceu a uma geração de ditaduras e constituiu um eixo de governantes que fez das imposições a mola real para os desígnios políticos dos países que lideraram, alguns deles abusivamente (como aconteceu com o “pai” do nacional-socialismo alemão, Adolf Hitler).

Se alguns elogiaram o desassombro com que enfrentou o estado depauperado das finanças públicas do país, após a I República, recuperando-as à custa de muita poupança, de quase nenhum investimento, resguardo de valores e de hábitos de muita modéstia e parcimónia.

Isso debilitou o setor público e a já fragilizada população portuguesa que teve de emigrar, outros repudiaram a formação de uma polícia política e outros elementos essenciais da ditadura que castraram a opinião e a participação do povo português (nomeadamente a Censura na imprensa e nas atividades de caráter cultural). “Deus, Pátria, Autoridade” foi o lema do Estado Novo para definir a forma de vida e o trajeto português internamente e no mundo, o que foi reforçado com a eclosão da guerra colonial, movida por guerrilheiros e movimentos de libertação daquilo que Salazar tanto prezava: as “possessões ultramarinas” que passaram a ser obrigatoriamente defendidas por uma generosa juventude portuguesa, a partir da Índia (1961) e dos atuais países africanos de Cabo Verde, Guiné-Bissau, Angola, Moçambique e São Tomé e Príncipe.

A influência de António Oliveira Salazar na vida portuguesa foi indesmentível. Já depois de morto, ainda incomoda em certos casos. Foi eleito “personalidade nacional” num inquérito televisivo, muito após o 25 de abril de 1974, e está a dar controvérsia a criação de um museu em Santa Comba Dão dedicado ao “filho da terra” e ao Estado Novo, com apoio da autarquia local, no meio de muitas críticas.

A contestação a Salazar atingiu os mais variados níveis. Deu celeuma a carta que o Bispo do Porto lhe endereçou e que motivou o exílio forçado a D. António Ferreira Gomes e a publicação de “Dinossauro excelentíssimo” do escritor português José Cardoso Pires. Sendo esta uma obra de ficção (editora Arcádia, 1972, com ilustrações de João Abel Manta) era, indiscutivelmente, um retrato / caricatura do presidente do conselho (de ministros).

Ultramar

Quando a idade avançou e a influência de outros começou a impor-se à sua volta, reverencialmente considerado pela maioria, mas artificialmente por alguns outros homens do poder (sobretudo os do dinheiro e das multinacionais), a estrutura do Estado Novo abriu fendas e começou a abalar. As posições sobre a chamada “Guerra do Ultramar” tornaram-se mais intensas e publicadas. Vozes importantes do regime anterior (António Spínola, Costa Gomes, Adriano Moreira, Veiga Simão, Sá Carneiro) demarcaram-se das posições do “chefe” e abriram mais um caminho para a mudança que também Marcelo Caetano quis produzir com a chamada “primavera marcelista”, sem conseguir nada de relevante a não ser o desconforto das Forças Armadas que vieram a levar a efeito um “golpe militar”, em 25 de abril de 1974, o qual encerrou, em definitivo, o regime político, social e económico, idealizado e mantido por Oliveira Salazar.

Um atentado que falhou

Em 4 de julho de1937, era domingo, Salazar foi à missa, como sempre o fazia. Em frente da capela privada na rua Barbosa du Bocage, quando o presidente do conselho saía da viatura automóvel que o conduzia, explodiu uma bomba de dinamite. A imprensa desse dia logo sossegou os seus leitores: “Não houve ferimentos e os estragos limitaram-se a vidros partidos” (in “Diário de Lisboa” de 4 de julho de 1937).

Mas esse acontecimento (“Atentado criminoso que se frustrou”!, como o mesmo jornal acentuava na primeira página, causou visível embaraço e motivou o reforço da carga repressiva das forças de segurança do país (GNR e PVDE, depois PIDE, à frente de todas). Também o “Diário de Notícias”, de 7 de julho, desse ano colocava em título maior da sua capa “O infame atentado de ontem contra o chefe do governo”, considerando em antetítulo que se tratava de “um crime que visava a nação”.

Salazar estava apenas há cinco anos no governo e esse atentado terá sido o facto mais saliente à sua contestação, de forma violenta.

“Às quatro horas da madrugada de hoje, um sobrinho do sr. Leovegildo Franco de Sousa, antigo ministro da agricultura, ao entrar em casa, viu em frente do prédio, onde a capela se situa, quatro indivíduos conversando junto de um automóvel com as luzes apagadas. Mas não podendo nem de perto nem de longe suspeitar do que se tratava, foi-se deitar tranquilamente” (“Diário de Lisboa” – 4 de julho de 1937).

Todos os jornais se armaram em detetives, tentando reconstruir o atentado e obter alguma glória junto da concorrência e dos seus leitores.

“Sabendo que o Chefe do Governo vai todos os domingos à missa na capela privada do senhor Josué Trocado, no prédio número 26 da Avenida Barbosa du Bocage, entre as avenidas da República e 5 de outubro, um dos quatro indivíduos do automóvel misterioso que ali estacionou de madrugada levantou a placa do colector das águas, colocou ali uma bomba de contacto eléctrico e seguindo por debaixo do chão até à avenida 5 de outubro, estendeu o fio ligado à bomba pelo colector fora, ficando com a ponta na mão” (“Diário de Lisboa” – 4 de julho de 1937).

“Ainda houve quem visse um indivíduo coxo a fugir do lugar onde se deu a explosão, havendo quem suponha que se trata de um defeito físico simulado para despistar as autoridades” (idem).

Desvalorizando este episódio (“Como fiquei vivo, terei de continuar a trabalhar” ou “Eu tenho sempre muita sorte nestas coisas”), Salazar fez aumentar a confiança do povo em si próprio: “Não há dúvida de que somos indestrutíveis. A Providência assim o destina e vós, na terra, assim o quereis – disse ontem Salazar a milhares de portugueses que o saudaram entusiasticamente, protestando contra um miserável atentado de que foi alvo”
(“Diário da Manhã” – 5 de julho de 1937).

A queda da cadeira

O episódio da saída de Salazar da cena política ficou conhecido como “A queda da cadeira”. Sentado numa de lona, no Estoril, no início de agosto de 1968, Salazar caiu inesperadamente e bateu com a cabeça no chão. Conduzido ao hospital, foi operado de urgência.

“Tudo normal” e “recuperação total” disseram os médicos que o operaram, para descanso de quem não imaginavam sequer a vida portuguesa sem aquele que tinha construído um regime à sua imagem e semelhança e para o qual não havia alternativas, a não ser as que desafiavam a lógica das coisas, a moral, o respeito e a disciplina como sempre o estadista dissera. Em suma, a social-democracia, o socialismo e o comunismo.

Mas quando os médicos António Marques e Eduardo Coelho (que assistiram Salazar durante a crise) referiram estar “tudo normal” não contavam que viesse a surgir, inesperadamente, um agravamento na situação.

Quando tudo parecia ter passado, o estado de saúde de Oliveira Salazar agravou-se, no dia 17. E, 10 dias depois, Américo Tomás nomeou outro presidente do conselho, o professor Marcelo Caetano que, durante anos, fora responsável pela Mocidade Portuguesa, órgão juvenil de apoio ao Estado Novo, de formação cristã, de natureza obrigatória nas escolas e instituições do país.

A morte de Salazar, após um longo período de doença, acabou por não espantar ninguém. De 7 de setembro de 1968 (a queda da cadeira) até 27 de julho de 1970 (a morte na sua residência), com toda uma série de acontecimentos verificados nesses dois anos, todos tomaram consciência de que o fim estava próximo.

E o fim do Estado Novo chegou quatro anos depois.

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