Navegar era, antes, um imperativo patriótico. Era uma aventura, bem certo, mas justificada pela força das circunstâncias.
Não se navegava na internet ou em diversas plataformas de redes sociais, como hoje. Não se clicava num rato com um dedo. Eram os ratos que clicavam com as suas garras os porões das naus onde eram levados mantimentos secos e duradouros. Não havia arcas frigorificas, só barris de sal que preservavam esse conduto. E vasilhas para a água que, quando acabava, recolhia-se a da chuva, o que hoje não é feito para o abastecimento potável humano.
OS NAVEGADORES DE QUINHENTOS NÃO ERAM SÓ GENTE DO MAR
As naus, as pequenas “cascas de noz” (como alguém, de forma expressiva, lhes chamou) não levavam tanta gente como hoje, mas esta era muito mais animosa. Os navegadores partiam nas caravelas depois de se despedirem das suas terras e das suas famílias. Muitos deles, de facto, jamais voltariam, por causa das tempestades que afundavam os barcos, dos piratas que os assaltavam, das doenças que os atingiam e das limitadas capacidades de nutrição ou de higiene a bordo, de armazenamento de víveres secos, de manutenção das naus em caso de avarias ou acidentes e, até, de primitivas tecnologias de navegação.
Tudo isso era superado, no entanto, pelo grande esforço, pelo sentimento do dever a cumprir em favor do rei, do país, da História e da Glória que finalmente os aguardaria, bem manifestada nos regressos dos que sobreviviam, heroicos, à sua Pátria.
Os navegadores de quinhentos não eram só gente do mar, habituada a ver e a sentir a força das ondas. Não eram só pescadores. Eram marinheiros valentes, sim, mas também eram carpinteiros e serralheiros, lavradores, alfaiates, cozinheiros. Eram estudiosos dos climas e das posições das estrelas no firmamento. Dos ventos e das marés, do comando e da obediência, da disciplina, da hierarquia, da concentração naquilo que iam descobrir, do espírito coletivo da sobrevivência.
Eram barcos à vela. Feitos de madeira fina e resistente. Se o vento faltasse (o que era raro), remava-se e eles lá iam em direção a um lugar que desconheciam. Ainda ninguém dobrara com sucesso o Cabo Bojador, a volta ao mundo estava ainda incompleta, faltava saber onde ficava o Brasil, onde era a Índia, o Japão ou a costa africana.
Os navegadores portugueses não eram só do litoral, das faixas terrestres influenciadas pelo mar. Houve alguns deles que eram do interior do país, de lugares onde as ondas não eram líquidas, mas rochosas. Trás-os-Montes conta com três deles, de zonas distintas do atual distrito vila-realense, do Douro (Sabrosa) ao Marão (Vila Real) ou ao Barroso (Montalegre).
Fernão de Magalhães, Diogo Cão e João Rodrigues Cabrilho foram os seus nomes. A História ainda os celebra (ainda que pouco), os transmontanos reconhecem-nos como seus concidadãos embora não haja deles propriamente certidões de nascimento nem diários de bordo que os confirmem como tal. Mas é grande a força da tradição. E essa mostra-nos, por exemplo, as casas em que nasceram, as escolas que frequentaram, as ruas que percorreram, os familiares que os criaram.
FEITOS DA “MARINHAGEM DE TRÁS-OS-MONTES”
Muita gente já falou deles; historiadores e investigadores à frente de todos. E da nossa terra também há alguns que registaram o que pesquisaram: João Soares Tavares (“Montalegre e o descobridor da Costa da Califórnia” ou “João Rodrigues Cabrilho, um homem do Barroso?”), Manuel Alcino Martins de Freitas (Fernão de Magalhães nasceu em Sabrosa), este e Lourenço Camilo Ferreira da Costa (“Diogo Cão, homenagem de Vila Real no V Centenário da descoberta do Rio Zaire”, Batista Mendes “Diogo Cão” e Carmo Reis “A grande aventura: por mares nunca dantes navegados” (este com o contributo do ilustrador José Garcês). O jornalista e escritor João Barroso da Fonte não os esqueceu no seu “Dicionário dos mais ilustres transmontanos e durienses”.
Se a pirataria ainda persiste (o que se passa hoje no Mar Vermelho, por exemplo, em conjugação com os conflitos bélicos Rússia / Ucrânia ou Israel / Palestina, é bem sintomático disso mesmo), também permanecem os feitos da marinhagem portuguesa que, como Luís de Camões referiu, deu novos mundos ao mundo”.
Falemos hoje destes três ilustres transmontanos que não temeram o mar, tornando-o, como disse Fernando Pessoa, um “mar português”.
DIOGO CÃO
1482. Saiu de Lisboa uma armada, a mando de D. João II, para prosseguimento das descobertas que já tinham sido feitas. O objetivo era a costa africana. Ao comando dessa armada estava Diogo Cão que, depois de dias com ventos favoráveis, chegou ao rio Zaire, subindo-o até ao Congo. Novas terras, novas gentes, ali estava o desconhecido, à frente de todos, praias serenas ou florestas exuberantes de verde. E, lá no meio, populações nativas, semiescondidas e desconfiadas. Era a hora do encontro e Diogo Cão revelou dotes de grande diplomata, contactando o chefe dos bantus, chamado Manicongo.
O regresso a Portugal foi uma excelente notícia. Estava aberta uma via fluvial importante para futuras pesquisas, novas atividades económicas e a angariação de produtos cujo valor fazia falta ao país. A navegação para sul permitiu a Diogo Cão e seus homens desbravar toda a costa de Angola até ao sul de Benguela. Novos cometimentos chegariam depois. Há quem defenda que o grande navegador português regressou uma outra vez ao local por si descoberto, outros dizem que lá voltou mais duas vezes sendo que na segunda expedição terá perdido a vida. Ninguém sabe, na verdade, se o descobridor do Zaire foi lançado ao mar ou se morreu em terra. A ser assim, ninguém sabe onde foi sepultado. Deixou mensagens gravadas em rochas de sítios por onde passou e através de padrões nos pontos que descobriu. Os padrões eram colunas verticais encimadas muitas vezes pela cruz cristã e ostentando as armas do reino. Há uma estátua que lhe é dedicada em Lisboa, no Museu Militar (de autoria de Domingos Costa) e outra, em Vila Real, numa praceta com o seu nome, esculpida por Canto da Maia.
FERNÃO DE MAGALHÃES
O descobridor do estreito marítimo de seu nome, que permitiu chegar a zonas de especiarias, foi um grande protagonista náutico da história mundial.
Nascido por volta de 1480, faleceu nas Filipinas já no século XVI (1521). Da sua vida de lutador fizeram parte as batalhas de Diu (Índia) para onde tinha ido em 1505, incluído na armada de D. Francisco de Almeida, e de Azamor (Marrocos), em 1513. Depois disso, não tendo visto reconhecidos os seus serviços, ofereceu-se ao rei de Castela que lhe confiou cinco barcos, tendo Magalhães partido de San Lucar de Barrameda, em 1519. No ano seguinte, iniciou, desafiando o mar e o inverno, a terrível travessia do Pacífico. Era a viagem de circum-navegação do globo terrestre que acabaria por ser terminada por Sebastian Del Cano que chegou de regresso a Barrameda em 1522, apenas com um navio dos cinco iniciais e com 18 homens dos 265 que tinham iniciado a epopeia.
Magalhães morreu no cativeiro, depois de ter sido detido pelo chefe de Mactan que esteve em guerra com as Filipinas, país com que se aliou.
JOÃO RODRIGUES CABRILHO
Nascido num dos últimos anos do século XV, emigrou para Espanha. E, na altura do tratado de Tordesilhas, dedicou-se ao mar e à marinha, integrando uma tripulação que, ao serviço do rei espanhol, se dirigiu para Cuba, onde ficou a viver. O cineasta e biógrafo João Soares Tavares descreveu a participação de Cabrilho (nome adquirido fora do batismo, por ser natural de Cabril /Montalegre) na conquista do México como capitão de uma companhia de besteiros do exército de Hernan Cortez. Participou na expedição de Francisco de Orosco a Oaxaca, na conquista de Tututepeque e na Guatemala.
Ganhou prestígio como militar e foi-lhe confiada a empreitada de organizar uma armada para rumar às Molucas, terra de especiarias, de grande importância para os cofres do reino espanhol. Em 1540, partiu como almirante dessa armada constituída por mais de uma dezena de barcos (entre 12 a 14) e, em 1542, partiu para nova missão: descobrir a costa da Califórnia, o que conseguiu.
Foi na sequência de uma tempestade, no ano seguinte, que faleceu, após ter perdido uma perna. Jaz na ilha de Possessão, mais tarde designada pelo seu nome.
A CASA DE DIOGO CÃO E UMA PLACA QUE NINGUÉM CONSEGUE LER
No dia em que fotografei a considerada Casa de Diogo Cão, na Avenida Carvalho Araújo da cidade de Vila Real (paredes meias com o edifício da Câmara Municipal) para este trabalho, vi um grupo de turistas a fotografá-la também, manifestando curiosidade sobre as suas caraterísticas e beleza do seu formato. Disse-lhes o que eles não imaginavam: segundo a tradição, foi ali que nasceu um navegador português de nomeada que descobriu Angola e a foz do Rio Zaire. Chamei a atenção deles para uma placa na parede que os esclareceria melhor, mas ficámos admirados (eles e eu) pelo aspeto desmazelado dessa placa que, segundo o opúsculo de Manuel Martins de Freitas e Lourenço Camilo Costa, publicado na altura das comemorações do 5º centenário da descoberta deveria dizer: “Segundo a tradição, nesta casa nasceu Diogo Cão, escudeiro da Casa de D. João II que de 1482 a 1486 descobriu e explorou a costa ocidental de África desde o Rio Zaire à Serra Parda”.
A Câmara Municipal de Vila Real e a Casa dos Estudantes do Império mandaram por esta placa no terceiro centenário da reconquista de Angola (1648-1948)”.
Essa placa, como está, ninguém a consegue ler.