Era dia de festa e de devoção ao Mártir S. Sebastião. Alguns bailadores atropelavam-se de felicidade esquecidos de tudo. Muitos haviam de dançar até que os galos da Rechã cantassem pela manhã. A Banda de Mateus tinha repertório de sobra para toda a noite com rapsódias que faziam furor.
O largo depois da meia-noite já cheirava a suor, a vinho e a salpicão arrotado, mas esses odores não diminuíam a vontade de dançar, antes, aguçavam o apetite…
Uma rapariga havia de lembrar essa noite para sempre pelo sentir de um aperto nas entranhas e no coração, isto porque a moça tocara pela primeira vez as mãos de um rapaz que com ela quis dançar uma polca tocada ao som da banda com solo a cornetim do famoso Joaquim do Pinto. Porém, o desajeito em acertar o passo ao ritmo da música, fez com que o Corisco a trocasse por uma outra moçoila mais expedita, olhos negros pestanudos e matreiros, beiços gretados do cieiro, mas ajeitada no bambolear do corpo…
No entanto, aquela dança marcara a Esperança para sempre. Com o ventre esvaído de miséria, a rapariga tinha mostrado na dança um provocador sorriso para o Corisco. Nele, o rapaz ficou colado como selo em carta de amor.
Nos dias seguintes o corpo da pobre rapariga tremia de sensações estranhas e o seu olhar manifestava irreprimíveis desejos de voltar a tocar as mãos daquele jovem que com ela quis bailar.
Com o tempo, o seu coração sentia um nervoso miudinho. A pobre andava cada vez mais triste e estranha, porque o Corisco desaparecera da sua vida.
Passava por vezes de noite junto à casa do rapaz para sentir quaisquer sinais de vida. E perguntava a quem com ela se cruzava:
– Num “biram” o Corisco!?
Respondiam-lhe em modos de troça e de pena ao mesmo tempo: – Qual Corisco o magricelas?
Um dia com a mesma pergunta obteve uma resposta encorajadora, ouvindo da ti Genoveva que o Corisco tinha perguntado por ela e que gostava de lhe falar. A rapariga transfigurou-se abrindo os olhos de felicidade dando um salto de contente.
Na verdade, aquele rapaz por quem ela tanto sofrera e sonhara acabou por ser o pai dos seus filhos.
Ao longo da sua vida, o Corisco fora o único homem que lhe pusera os lábios no seu rosto e as mãos em lugares íntimos…. Tiveram uma vida flagelada pela fome e doenças que caíram naquela casa dizimando quase tudo e todos. O Corisco, no chamamento breve da morte não teve saúde para educar os filhos. Já o sogro Tomás morrera de tuberculose e era visto nos fins de tarde a apanhar beatas ou a pedir por caridade um cigarro para esquecer os males do corpo.
A pobre mulher ficara cada vez mais doente pela morte prematura do seu “home”. Rezava a todos os santos para ir ter com ele e pedir-lhe uma dança, a mesma que a fizera apaixonar-se por ele. Nos seus pensamentos vogava um imaginário de felicidade plena.
Já enferma e deitada no leito, era invadida por estranhas sombras, rodeando-se de mulheres vestidas de negro garatujando palavras sem sentido, enquanto se dissipavam em nevoeiros os últimos sopros de vida… Todo aquele espaço era inundado de rezas e ladainhas…
As vacas do Alexandre Vadio ao passarem diante daquela casa naquele momento, também elas, habitualmente fogosas, detiveram-se por momentos, silenciadas esperando do dono o habitual ferrão no lombo… Estava consumada a partida.
A Teresa Figa Seca, esquelética e curvada sentenciara exibindo um rosário velho e sabujo: “ O Corisco já espera por ela.” Uma outra, não menos velha acrescentara invadida de lágrimas:” Há quanto tempo ó Teresa!”
No dia seguinte a aldeia voltava ao normal. Os trabalhadores regressavam ao trabalho da enxada e os arados investiam na lavra pesada e ronceira de sol a sol e os ventres continuavam esvaídos de muita miséria…