Sábado, 12 de Outubro de 2024
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Adérito Silveira
Adérito Silveira
Maestro do Coral da Cidade de Vila Real. Colunista n'A Voz de Trás-os-Montes

A saudade do toque das ave-marias

Antigamente, depois do toque das ave-marias já lusco-fusco chegavam dos campos os lavradores de enxada às costas e saudavam-se

Os sinos na aldeia comandavam os ciclos da vida e eles impunham solenidade e respeito…os homens tiravam os chapéus, as mulheres paravam e rezavam.

Nos anos 40 as raparigas casavam cedo, para isso só precisavam de saber fazer o caldo, amassar o pão, coser as roupas, terem a casa limpa, botar remendos e serem asseadas.
Havia a pedagogia do sexo dada pelas mães escrupulosas que davam as primeiras lições às filhas, usando uma linguagem cuidada… as filhas aprendiam essas lições mais depressa do que a tabuada, os verbos e os rios, as serras e as linhas férreas. Agora já não se joga o pião, nem a cabra cega, não subimos às árvores, nem corremos pelos prados e searas.

Já não perseguimos as rolas nos milharais nem o melro nas cortinhas. Agora a liberdade nos vê, nos acena e nos faz caretas e desdenha. Liberdade tímida que se mostra em utopias, zombando de ronha. Trocámos a amplidão de um paraíso livre por um éden que não se apalpa nem se sente…utopias, utopias, nas fossas negras das falsidades.

Agora falamos com os amigos pelo telemóvel que se banaliza, comunicamos à pressa sem conseguirmos falar, porque nos falta a expressão dos sorrisos implantados na arquitetura dos rostos… Assim, a sociedade vive consumida na distração da fotogenia, mostrando o corpo sem se ver a alma. Vã ilusão e funesta realidade submissa à implantação do ego inflamado.

E deitados na praia, a imaginação escapa a qualquer mirone de ocasião, quando o corpo de mulher se expõe, se mostra e banaliza, se oferece gratuitamente.

Mudaram os tempos, os tempos que correm vertiginosamente sem que consigamos ver a sua fisionomia, o seu rosto mensageiro… e para vermos melhor a realidade dos ventos que correm, corremos nós também ao cemitério honrando as memórias daqueles que o tempo para ali levou… Paramos e olhamos na nossa imaginação homens e mulheres que desejaríamos ver: a Panchúlica, Mio, Tomásia, Rebeca, o Barrias, Pintos e Furões, os Raposos e Rainhos… uns tocavam pratos nas bandas, outros bombos e acessórios, uns tantos sopravam nos trombones e trompinhas de Nossa Senhora, outros assobiavam como rouxinóis malabaristas…Outros ainda faziam contas à vida para não morrerem de fome.

Lá ao fundo, bem recolhida ao lado dum cipreste, lá está o lugar de uma menina ainda de sorriso ao vento, lábios inundados de doçura e gratidão por ter morrido sem conhecer a mácula do pecado, nem a crueldade gananciosa das sociedades modernas. Morreu feliz pensando que o nosso planeta tinha futuro…Partiu santa, ainda com a vida em botão…botão fino e delicado, botão saído da mais bela flor…Morreu anjo, ao toque das ave-marias… Morreu quando o tempo parou para a ver passar.

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