Na luz que nos conduz, os anos passam velozmente e as saudades crescem à medida que aumentam os cabelos brancos ou a falta deles se faz notar…
Há pessoas e coisas que vão desfilando diante de mim, algumas com ternura, outras passando fechadas e indiferentes em imagens que baralham e derrubam os pensamentos…
Há pessoas que caem em cima de nós porque já morreram, mas nos dão alento para caminharmos em frente. Algumas são dignas duma saudade que nos faz interromper o percurso da vida, desencadeando a lágrima e o choro. Outras são vivas ainda e são felizes, mas também dignas da nossa ternura quando não estão presentes.
Olhando para trás sem pressa, vislumbro lembranças de outros tempos. Na distância do tempo se ouve o tilintar agitado da campainha do sacristão Zé da Laura a anunciar a chegada de Cristo Salvador… toca-as freneticamente como se o Menino feito Homem ali estivesse e o aplaudisse. E o sacristão acreditava que levando a cruz e agitando a campainha o mundo lhe pertencia porque o maior tesouro estava ali com ele…
Logo atrás vem o padre bonacheirão com um sorriso triunfante como se Jesus estivesse bem dentro do seu coração… proeminente da barriga porque se sente feliz…
O zeloso sacristão procura passar à frente do padre com o grande crucifixo que vai ser beijado por todos os paroquianos da aldeia. E o Padre Faceira declama alto:” Haec dies, quam fecit Dominus, exultemos et laetemur in ae…” depois todos a beijar o Cristo, primeiro os mais velhos. Se em casa há algum paralítico ou demente então esses serão os últimos a receberem e beijarem o Crucifixo por mais tempo obtendo do prior palavras mais generosas ungidas de compaixão, enquanto a baba dos doentes vai deslizando em escorrências cadenciadas…
E o cortejo vai de casa em casa. E na sacola do sacristão vão os folares, as amêndoas e outras guloseimas, preito da amizade inteira de uma freguesia ao padre que lhes dá a vida do espírito e a promessa da salvação eterna.
Cada família vai formando no cortejo da vida pascal, reunindo-se na última casa. Aí, todas se juntam numa alegria coletiva como expressão sincera de uma felicidade maior, pertença de todos.
Nos dias das festas, as manhãs despertavam mais cedo e os ares eram vestidos sempre de um manto primaveril e de um cheiro forte a pão cozido de noite. A serra ao longe deixava definitivamente o seu negro de inverno. E os afilhados visitavam os padrinhos. E o povo acreditava sempre no dia seguinte…
Que felicidade poder lembrar quem nos ajudou a construir a elaboração da teia humana naquilo que ela é grandiosa…