Os dados recolhidos são impressionantes, suspeitando-se que nem todas as vítimas relataram os abusos que sofreram. Ainda assim, e sem pôr em causa o testemunho de ninguém, gostaria de ouvir as duas partes envolvidas, o que na esmagadora maioria dos casos já não é possível. E não percebi a necessidade de se contar em público relatos de abusos, a não ser para se criar indignação e escândalo, provocar ondas de choque muito ao sabor destes tempos, que se alimentam de flamejante indignação e em que se quer saber e expor tudo.
Pouco adiantará destacar a coragem da Igreja, que para muitos pouco importará. Mas foi, de facto, um passo de grande coragem da Igreja, sem precedentes nos tempos atuais. Há que continuar a ir ao encontro das vítimas, fazer justiça o melhor possível, e lançar uma profunda reflexão no interior da Igreja sobre como se chegou aqui, o que não se fez e se devia ter feito, que cultura instalada na Igreja permitiu a proliferação desta chaga, assumir erros e promover mudanças sérias e firmes, para se evitar a pedofilia no seio da Igreja. Veremos agora quem vai dar passos em frente. A pedofilia é um problema transversal à sociedade, existe em muito maior número fora da Igreja (há que reconhecer que na Igreja reveste-se de uma especial gravidade), afeta muitas instituições, desde logo a mais basilar, que é a família. Se a sociedade quer mesmo combater a funesta pedofilia, há muito a fazer.
No que à Igreja diz respeito, no meu pobre contributo, começaria por três ações: repensar o modelo de seminário que está implementado, que para muitos já não faz sentido. Há documentos que já dão orientações neste sentido. Retirar o seminarista da família e da sociedade para o formar à parte talvez já não seja a melhor solução. A vocação deve amadurecer no contacto com o húmus do mundo e envolvendo a comunidade e a família.
Depois, convidaria para a reflexão da Igreja e acompanhamento pessoas competentes na área da educação e da formação sexual. Não basta propor o celibato e recomendar a castidade. A sexualidade, pela sua força, tensão, pulsão e complexidade, e muito mais neste mundo hipersexualizado em que vivemos, exige mais atenção e formação permanente.
Por fim, na Igreja não há poder, mas na prática uns podem mais do que outros. Há que rever a sacralidade e a superioridade de que se reveste a hierarquia e aumentar a transparência e a vigilância.