A sua concretização deveu-se sobretudo à ciência e “…como resposta ao inultrapassável instinto de sobrevivência e à infinita inquietação intelectual do Homem”, segundo as palavras sábias de Linhares Furtado. Joseph Murray, que iniciou esta “aventura” dos transplantes, realizando a primeira transplantação renal em Boston, em 1954, o que lhe valeu o Prémio Nobel da Medicina em 1991, interrogado no Congresso Mundial de Transplantação em Montreal, em 2004, aquando da comemoração dos 50 anos do 1º transplante renal, sobre “se em 1954 estava a fazer história?” Respondeu: “Nós não pensámos na história, nem que estávamos a fazê-la. Nós só pensámos em salvar a vida ao doente”.
A transplantação de órgãos, sem alternativa ao dador humano, depende do grau cívico e da solidariedade das sociedades que, estimuladas pelas campanhas de sensibilização, vão dando respostas positivas, mas insuficientes, face às exigências crescentes.
As pessoas falecidas, que não se opõem em vida, a que os seus órgãos, após a morte, sejam aproveitados para transplante, dão um contributo fundamental, sem o qual a transplantação de órgãos vitais não será possível. Como exemplo desse altruísmo que salva vidas, fica este texto admirável de Robert N. Test, americano do Cincinatti:
PARA ME RECORDAREM: “O dia virá em que o meu corpo repousará num lençol branco primorosamente dobrado nos quatro cantos de um colchão localizado num hospital diligentemente ocupado com vivos e moribundos. Num dado momento, um médico determinará que o meu cérebro deixou de funcionar e por isso, apesar de todas as intenções e projetos, a minha vida parou. Quando isso acontecer, não tentem instilar vida artificial no meu corpo, usando uma máquina. E não lhe chamem a minha cama da morte. Chamem-lhe antes cama da vida e deixem o meu corpo ser levado para ajudar a conduzir vidas plenas. Dai a minha vista ao homem que nunca viu nascer o sol, a face de um bebé ou o amor de uma mulher. Dai o meu coração a uma pessoa cujo coração só lhe causou dias intermináveis de dor. Dai o meu sangue ao jovem que foi arrancado ao naufrágio do seu carro, para que possa viver e ver os seus filhos brincarem. Dai os meus rins a quem depende de uma máquina, semana a semana. Tirai os meus ossos, todos os músculos, todas as fibras e nervos do meu corpo e descubram uma maneira da fazer andar uma criança inválida. Explorai todos os cantos do meu cérebro, tirai as minhas células, se necessário, e deixai-as crescer para que um dia um rapaz mudo possa gritar ao guincho do morcego e uma rapariga surda possa ouvir o chão da chuva a bater contra a sua janela. Queimai o que sobrar de mim e atirai as cinzas ao vento para ajudar as flores a crescer. Se tiverem de enterrar algo, que sejam as minhas faltas, as minhas fraquezas e todo o mal que fiz ao meu semelhante. Dai os meus pecados ao diabo. Dai a minha alma a Deus. Se, por acaso, te quiseres lembrar de mim, fá-lo com uma ação ou palavra amável a quem precisar de ti. Se fizeres tudo o que te pedi, viverei para sempre”.