Quarta-feira, 21 de Maio de 2025
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Adérito Silveira
Adérito Silveira
Maestro do Coral da Cidade de Vila Real. Colunista n'A Voz de Trás-os-Montes

As viagens de Adão Silveira

Há pessoas que permanecem na memória pelos percursos de vida marcados por viagens e odisseias que nos parecem quase lendárias…

Adão Silveira foi, durante dezenas de anos, um músico de Mateus que percorreu muitos milhares de quilómetros para, partindo de Lisboa, desembocar num lugar que para ele era mítico e profundamente especial. E da Banda da Armada, Adão Silveira fazia-se transportar com o seu clarinete, pronto a soprar com a alma, o amor pela banda que o viu nascer e crescer.

Logo à chegada, o seu porto era sempre o mesmo: a casa de ensaio – modesta, rasteira, mas repleta de histórias e pergaminhos…

Outros, sabendo que o Adão lá estava, acorriam também, e o grupo de “tocadores” crescia. A alma elevava-se na força do coletivo, no espírito sempre omnipresente de frei Vicente…
A sua paixão sempre foi a requinta. Quando a tocava nas longas noites dos arraiais, Adão Silveira transfigurava-se: a paixão tornava-se emoção, e o corpo fundia-se em osmose com a sua alma grande, de pessoa bondosa e altruísta.

O artista é sempre aquele que ama a música que sente… e o Adão tocava fervorosamente, movido por uma paixão enraizada na tradição familiar e nas histórias hilariantes que ouvira ao longo de toda uma vida de músico.

Para o Adão, a música é como uma melodia antiga, ouvida em paisagens de outrora e sentida ainda com intensidade. Falar-lhe das rapsódias de antigamente é o mesmo que evocar melodias que continuam a ser a essência do seu sentir – a razão íntima de pequenos prazeres que justificam a sua existência e a sua vontade de viver.

E ele amou tanto, ao longo de tantos anos, a requinta e o clarinete… Agora vive esses tempos em suaves, mas perturbantes imagens – de uma certa dor e de muita saudade.
Adão Silveira é daquelas pessoas cuja presença todos procuram. Mesmo sem falar muito, basta estar com ele para sentir paz e serenidade – ou para soltar uma gargalhada, porque o seu humor refinado é indisfarçável e contagiante.

Hoje, as recordações deslizam como sinfonias sonâmbulas da noite – tristes, enigmáticas, por vezes angustiantes – e o Adão tenta reagir aos cenários que o atormentam sempre que se fala da Banda de Mateus, no tempo em que era elemento ativo, presente e sacrificado dessa velhíssima coletividade…

Quem tocou na Banda de Mateus durante 37 anos será eternamente músico – umbilicalmente ligado à tão prestigiosa instituição.

E talvez, quando sopra o vento nas noites de verão, seja ainda possível escutar, entre os ramos, um sopro distante de requinta – como se o próprio Adão continuasse a tocar por entre as sombras da memória.

A música é assim: morre e renasce em cada gesto de lembrança. E Adão – como tantos outros que deram vida à Banda de Mateus – viverá enquanto houver quem escute, mesmo em silêncio, o eco da sua dedicação.

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