Adão Silveira foi, durante dezenas de anos, um músico de Mateus que percorreu muitos milhares de quilómetros para, partindo de Lisboa, desembocar num lugar que para ele era mítico e profundamente especial. E da Banda da Armada, Adão Silveira fazia-se transportar com o seu clarinete, pronto a soprar com a alma, o amor pela banda que o viu nascer e crescer.
Logo à chegada, o seu porto era sempre o mesmo: a casa de ensaio – modesta, rasteira, mas repleta de histórias e pergaminhos…
Outros, sabendo que o Adão lá estava, acorriam também, e o grupo de “tocadores” crescia. A alma elevava-se na força do coletivo, no espírito sempre omnipresente de frei Vicente…
A sua paixão sempre foi a requinta. Quando a tocava nas longas noites dos arraiais, Adão Silveira transfigurava-se: a paixão tornava-se emoção, e o corpo fundia-se em osmose com a sua alma grande, de pessoa bondosa e altruísta.
O artista é sempre aquele que ama a música que sente… e o Adão tocava fervorosamente, movido por uma paixão enraizada na tradição familiar e nas histórias hilariantes que ouvira ao longo de toda uma vida de músico.
Para o Adão, a música é como uma melodia antiga, ouvida em paisagens de outrora e sentida ainda com intensidade. Falar-lhe das rapsódias de antigamente é o mesmo que evocar melodias que continuam a ser a essência do seu sentir – a razão íntima de pequenos prazeres que justificam a sua existência e a sua vontade de viver.
E ele amou tanto, ao longo de tantos anos, a requinta e o clarinete… Agora vive esses tempos em suaves, mas perturbantes imagens – de uma certa dor e de muita saudade.
Adão Silveira é daquelas pessoas cuja presença todos procuram. Mesmo sem falar muito, basta estar com ele para sentir paz e serenidade – ou para soltar uma gargalhada, porque o seu humor refinado é indisfarçável e contagiante.
Hoje, as recordações deslizam como sinfonias sonâmbulas da noite – tristes, enigmáticas, por vezes angustiantes – e o Adão tenta reagir aos cenários que o atormentam sempre que se fala da Banda de Mateus, no tempo em que era elemento ativo, presente e sacrificado dessa velhíssima coletividade…
Quem tocou na Banda de Mateus durante 37 anos será eternamente músico – umbilicalmente ligado à tão prestigiosa instituição.
E talvez, quando sopra o vento nas noites de verão, seja ainda possível escutar, entre os ramos, um sopro distante de requinta – como se o próprio Adão continuasse a tocar por entre as sombras da memória.
A música é assim: morre e renasce em cada gesto de lembrança. E Adão – como tantos outros que deram vida à Banda de Mateus – viverá enquanto houver quem escute, mesmo em silêncio, o eco da sua dedicação.