Hiroxima é sinónimo de “fantasma de guerra atómica” imperecível. Mas, para muitos ela também simboliza uma prece (os papas bem afirmam essa mensagem durante os seus pontificados) de esperança, de que a paz prevalecerá, que o juízo humano será mais forte do que as potências (antes era duas, as da Guerra Fria, mas hoje já são mais) que continuam a ameaçar e a disputar a primazia no capítulo das armas nucleares.
Nós nascemos para dar vida, não para matar, nascemos dentro dos limites dos nossos processos humanos, não para além deles”
Papa Francisco, recordando a data
Desde Hiroxima, desde 1945, nunca mais deixou de se falar do nuclear aplicado à guerra. Ainda hoje assim é, de Israel / Hamas a Ucrânia / Rússia, eventos bélicos perigosos (se é que haverá alguns que o não sejam) a que, surpreendentemente, as pessoas parecem ter-se habituado.
Em agosto desse ano, os Estados Unidos lançaram sobre a cidade japonesa a primeira bomba atómica. Foi o argumento decisivo e definitivo para acabar com a II Guerra Mundial e impedir uma possível invasão japonesa em guerra com os EUA. No dia seguinte, outra bomba caiu em Nagasaki. Mas será legítimo considerar solução a aplicação de meios que fazem derreter milhares de pessoas? Derradeira solução ou genocídio inqualificável?
“A bomba de Hiroxima, vergonha de nós todos, reduziu a cinzas a carne das crianças”
“Cantata da Paz” – poema de Sophia de Mello Breyner, cantado pelo padre Francisco Fanhais
Fim da guerra, começo da era nuclear
Hoje, em Gaza ou em Kiev, a situação está a repetir-se. A ameaça de uso de armas nucleares cresce, sendo mesmo anunciada (como “projeto de defesa”) por todos os beligerantes.
Os sacrifícios das vidas de 27 milhões de soldados e de 25 milhões de civis nessa terrível 2ª Grande Guerra não melhoraram em nada a necessidade de paz no mundo (como hoje continua a notar-se). Afinal, a bomba travou aquela guerra, mas não travou a era nuclear.
Atentemos:
1941 – O Japão atacou a base naval norte-americana de “Pearl Harbour”, no Havai. Estados Unidos entram na guerra.
1942 – União Soviética inicia programa de armas atómicas, sob a direção do físico Igor Kurchatov.
1944 – “Projeto Manhattan” emprega 130 mil pessoas sob a direção de Robert Oppenheimer.
1945 – Tropas americanas desembarcam na ilha japonesa estratégica de Iwo Jima (fevereiro). Primeiros ataques aéreos ao Japão, com napalm e bombas incendiárias. Primeira missão destruiu 25% dos edifícios de Tóquio e fez 80 mil mortos. Ivo Jima é capturada, após 72 dias de intensos combates e a morte de 6.800 militares dos EUA e cerca de 20 mil japoneses (março). Tropas americanas invadem Okinawa. Morre o presidente dos EUA Franklin Roosevelt, sucede-lhe Harry Truman. Fim da guerra na Europa, com a rendição da Alemanha nazi (abril). Bombardeiro “Enola Gay”, voando a 9.150 metros, lança a bomba atómica sobre a cidade de Hiroxima, causando a morte de 160 mil pessoas e danos irreparáveis no corpo e na vida dos que não morreram (o envenenamento radioativo posterior fez pelo menos 70 mil mortos). Estados Unidos lançam bomba de plutónio sobre Nagasaki, matando mais 40 mil pessoas. Rendição incondicional do Japão termina 2ª Guerra Mundial (agosto).
“Mais brilhante do que mil sóis”
Robert Jungk, sobrevivente do holocausto de Hiroxima, referiu:
“Primeiro, houve um clarão mais brilhante do que mil sóis. Depois, uma ventania ciclónica, seguida da formação de um cogumelo de nuvens carregadas de partículas radioativas. No centro da explosão, pessoas, objetos e edifícios desintegraram-se. O centro da cidade de Hiroxima deixou de existir”
O realizador cinematográfico japonês Renzo Kinoshita produziu um filme memorável (“A Bomba”) que mostra e nos transmite a sensação terrífica de quem viu o que se passou instantes antes de morrer. O céu ficou escuro quando o avião passou sobre as pessoas, enorme, pesado, assustador. Era o “Enola Gay” preto, movido a hélices – duas em cada asa, um B-29 a quem o coronel Paul Tibbetts, seu comandante, deu o nome da mãe. O seu homólogo “Bockscar”, comandado pelo major Charles Sweeney, atacou Nagasaki. Kinoshita deixa o écran suspenso quando o olhar das pessoas fita aquela fortaleza voadora que nunca tinham visto antes. Com os olhos esbugalhados e fixos (nem um piscar de olhos nem uma lágrima!) viram sair num paraquedas a bomba, bojuda, com urânio enriquecido, com quatro toneladas e poder explosivo equivalente ao de 15 mil toneladas de TNT e estremeceram quando a bomba detonou a seiscentos metros de altitude, às 8.15 horas desse dia 6 de agosto. Não deu tempo para nada: fugir, gritar, procurar abrigo. De repente um som elevadíssimo que nenhum dos mortos (foram 70 mil) sequer ouviu e, em simultâneo, o escuro, o nada. Apenas milhões de milhões de partículas disseminadas envenenando e derrubando outros tantos, nos dias que se seguiram.
“A seiscentos metros do solo explodiu tudo, numa fração de tempo calculada num milionésimo de segundo) e a uma temperatura de cem milhões de graus”
Nino Amadori, jornalista, in “Século Ilustrado”, agosto de 1970
Oppenheimer, cientista incómodo e arrependido
“Paz! Lutem pela paz!” – gritou o cientista, depois de se aperceber dos terríveis e catastróficos efeitos da bomba que havia produzido no âmbito do programa Manhattam cujo objetivo era dar aos aliados a arma atómica, evitando a ameaça de um programa nazi semelhante para a qual Einstein alertara o presidente Roosevelt, em agosto de 1939. Terminado o trabalho e não obstante uma experiência prévia, não havia a certeza das consequências. O físico Oppenheimer recusara a corrida aos armamentos e a produção da bomba de hidrogénio. Acabou por ser acusado de agente comunista durante a “caça às bruxas” dos anos 50. Acabou reabilitado pelo presidente Johnson, em 1963, quatro anos antes de morrer.
“As armas resguardadas atualmente nos arsenais representam uma energia explosiva equivalente a setecentas mil bombas do tipo da que explodiu em Hiroxima. A corrida armamentista leva2203 inevitavelmente o mundo para um holocausto atómico. É difícil, se não impossível, evitar uma escalada deste tipo pelo que, implicitamente caminhamos para o desastre”
Shuichi Kato, catedrático japonês, em “Comércio do Porto” em agosto de 1983
Palácio ficou de pé, depois de ter caído
Em Hiroxima, nos dias de hoje, há um monumento extraordinário. Era o Palácio de Exposições Industriais que, no âmbito dos trabalhos de reconstrução da cidade, segundo os mais modernos critérios urbanísticos, não foi recuperado. As suas ruínas transformaram-no no “Museu da Paz”, assim como ficou, um esqueleto impressionante no meio da populosa cidade. O único vestígio que resta como recordação daquela perene recordação da manhã de agosto de 1945 em que foi destruído.
A mente nunca esquece
O massacre de Hiroxima tornou-se uma coisa não-humana, foi a revelação daquele milionésimo de segundo que podia destruir não só uma criatura mas povos inteiros, árvores, plantas, animais, casas, solos e trajetos, fontes, rios e montes. De outra forma não se explica o drama dos “cérebros” que conseguiram construir a bomba atómica ou o drama dos executores que a lançaram. O comandante Tibbetts abandonou a sua vida civil, a família e a cidae onde habitava e recolheu ao convento da Serra San Bruno, na Calábria; o navegador do “Enola Gay”, Theodore van Kirk, entregou-se à meditação com sacerdotes japoneses que o acolheram; Claude Eatherly, piloto do avião de reconhecimento que guiou o “Enola Gay” sobre Hiroxima enlouqueceu e faleceu num centro psiquiátrico de Washington.
Todos os membros da equipagem sofreram penas semelhantes.
“Vozes estilhaçadas no telefone
A poeira iluminada pelo sol,
O cheiro de rosas, oh, não!
Alguém espera atrás da porta
Hiroxima, meu amor”.
Canção interpretada pela banda “Da Vinci”