O tempo da juventude é normalmente preenchido por aventuras e sonhos, que nem sempre são realizáveis.
Sim, mas os sonhos ajudam-nos a criar projetos, a sinalizar caminhos, a fomentar amizades… e há amizades que nos ajudam a sonhar. Há amizades que nos acompanham e inspiram em todos os nossos palcos da vida.
Em maio de1972, aterrei em Mateus, vindo de Lisboa. Fui à missa e ouvi um conjunto de vozes que penetraram em mim e me emocionaram. Aquelas vozes cantadas marcaram-me de tal forma que quis misturar-me com elas. Osmose perfeita: um namoro eterno com a música.
As melodias enchiam de harmonia todo o espaço sagrado, elevando-se como uma prece que chegava aos anjos, que até pareciam gostar. Aquelas vozes eram cheias de alma, e o entusiasmo crescia a cada cântico.
No domingo seguinte, regressei à missa das onze, ansioso por ouvir novamente aquelas vozes celestiais. Entre todas, uma sobressaía: Lurdes Dias. Já professora, destacava-se como figura central. A sua voz deslumbrava pela luz, pela força e pela alegria. Os cânticos, inspirados em temas universais, eram límpidos e leves, mas cheios de espiritualidade.
No final, aproximei-me da minha amiga Lurdes, expressando-lhe o meu apreço pelo que tinha acabado de ouvir. Ela respondeu-me de imediato:
– Tu é que deves trabalhar connosco e ensaiar músicas novas, mais elaboradas.
O Padre Faceira foi informado do meu desejo de colaborar, e assim nasceu um grupo mais organizado. O entusiasmo cresceu, e com ele a participação de mais vozes e instrumentos. Trompete, clarinete, acordeão, percussão, violas e guitarras passaram a fazer parte do Grupo Coral da Paróquia de Mateus.
Lurdes Dias permaneceu no coro mesmo depois do seu casamento. Imprescindível em tudo o que fazia pela freguesia, o seu empenho, os seus sonhos e a sua ligação à Banda de Mateus, onde chegou a integrar a direção em 1978, são testemunhos de uma vida cheia e dedicada à cultura e à comunidade.
Hoje, cruzo-me com ela raramente. Mas, sempre que a vejo, sou transportado para um tempo em que a sua presença contagiava e enobrecia todos os que partilhavam consigo ideias, projetos e alegrias. Naquele tempo, Lurdes Dias estava rodeada de pessoas impregnadas da mesma vontade de pugnar na valorização de Mateus.
Seria mais do que justo que a Freguesia de Mateus lhe prestasse uma simbólica homenagem. Que um dia, diante da sua gente, ela nos contasse as suas histórias – não apenas as da música, mas sobretudo histórias de pessoas que, com ela, ajudaram Mateus a crescer e a sonhar. Porque algumas vozes não se apagam: ficam para sempre dentro de nós.