Sábado, 27 de Julho de 2024
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“Um amparo para a confusão que é o nosso mundo”

O projeto “Aldeias Humanitar” foi criado no final de 2017 com o objetivo de “mobilizar todos para a luta contra o desamparo humano”. Até este ano, já apoiaram mais de dois mil idosos.

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São 11h16 e, antes que o sol atinja o ponto mais alto do dia, Modesto Soares está vergado, a mudar de sítio o guarda-sol que tem no pátio de sua casa, em Vila da Ponte. Mais ao lado, sentada num conjunto de quatro cadeiras que outrora foram de um cinema, está a sua esposa, Fernanda Soares.

A mulher, de 79 anos, é acompanhada pelo projeto “Aldeias Humanitar” desde que este projeto foi criado, em 2017. Três vezes por semana, uma “cuidadora comunitária”, vai lá a casa essencialmente para lhe medir os diabetes e a tensão, marcar consultas quando necessárias e ir buscar receitas de medicamentos, mas o mais importante para Fernanda é o facto de a ajudar a passar o tempo e conversar com ela. Apesar de receber este apoio, a mulher que foi emigrante confessa que tenta fazer as coisas por ela mesma. “Para mim, parar é morrer”, garante.

Para Modesto Soares, isto também é “bom”, porque, nunca querendo deixar Fernanda sozinha, aproveita o tempo em que a voluntária está com a esposa para ir conviver com antigos amigos. “Assim que vejo a carrinha da Humanitar a passar, venho logo para casa”, conta. Além disso, o homem relembra que a cuidadora conseguiu marcar uma consulta que estava há meio ano a tentar ter. No fundo, estas pessoas vêm “dar muita saúde e muita alegria aos velhos”.

O apoio que tenho recebido melhorou em 100% a minha vida. Não tínhamos ninguém com quem falar e agora, com a vinda da cuidadora, sinto-me mais alegre e distraída”
Fernanda Soares

A solidão em que vivem estas duas pessoas, com apenas “a sua Mimi”, a gata, é realmente reveladora da importância destes projetos. “É uma tristeza ser-se velho”, desabafa Fernanda, olhando para o marido que ainda se encontra a andar de um lado para o outro, referindo que não há ninguém nas redondezas com quem possam falar. Há, certamente, algumas casas, mas nenhuma está permanentemente habitada e “já ninguém passa na rua”.

Então, com este acompanhamento, a mulher sente-se “mais alegre e distraída” e garante que melhorou 100% a sua vida. “Parece que veio um anjo do céu”, declara, fazendo valer então o objetivo do projeto “cuidador comunitário”, em que, explica a diretora técnica do projeto, “alguém que fica na comunidade, naquela aldeia, ajuda as pessoas a trabalhar a sua autonomia e a sua independência de forma individualizada”. Mas os efeitos não são só literais. Agora, com uma ligação forte, a voluntária “é já como se fosse” da sua família.

A realidade deste casal é, infelizmente, a de muitos outros. Segundo os censos da GNR, no contexto do Programa de Apoio 65 dos Idosos em Segurança, na região do Douro Sul estão identificadas mais de duas mil pessoas em situação de isolamento e vulnerabilidade. Isto porque a própria estrutura das aldeias tem-se alterado. “Deixaram de haver mercearias locais, o padeiro e o peixeiro aparecem cada vez menos, e as pessoas acabam também por ter fraca ou inexistente retaguarda familiar, porque os filhos vão embora à procura de uma vida melhor”, explica Joana Silva.

O projeto surgiu exatamente para “prestar cuidados” a estes idosos, sem qualquer custo, através da ação de oito profissionais que constituem uma equipa multidisciplinar, desde enfermeiros, técnicos sociais, psicomotricistas, médicos e nutricionistas.

 

ATUAÇÃO

No projeto Aldeias Humanitar, que atua nos concelhos de São João da Pesqueira, Penedono, Sernancelhe, Moimenta da Beira, Tabuaço, Armamar, Cinfães, Tarouca, Lamego e Resende, existem três níveis de intervenção. O primeiro foca-se na “reabilitação das redes comunitárias, onde se enquadram atividades como rastreios e vacinação”. No segundo nível, há uma parceria, e intervenção conjunta, com a GNR, no contexto do Programa de Apoio 65 dos Idosos em Segurança. Assim, “o enfermeiro leva a proteção de qualidade de saúde e um par de cidadania, enquanto a GNR leva a componente da segurança”, fazendo com que haja uma complementaridade “em prol do bem-estar da pessoa e da sua qualidade de vida e da sua segurança”. O último está ligado aos cuidados complementares permanentes, em que as pessoas “podem ser referenciadas dos mais diversos níveis e, depois são ,contactadas para saber se querem ser acompanhadas, faz-se uma avaliação inicial e depois daí sai um plano de amparo individual que orienta a intervenção que fazemos com a pessoa”, explica a também enfermeira.

Além deste tipo de atuação, está ainda disponível, para a comunidade, a linha Humanitar, que, afirma Joana, tem “acesso direto aos enfermeiros, em que nós procuramos, através de uma consulta não presencial, tentar, com a pessoa, encontrar uma solução para aquilo que está a acontecer”.

Número total de idosos apoiados pelo projeto

E tem dado resultado. Além do retorno positivo que têm dos seus utentes, “que dizem que realmente o trabalho que fazemos com eles é um trabalho transformador” e que “veio dar o apoio que eles precisam”, o modelo de cuidados da intervenção humanitária utilizado pelo projeto é “reconhecido pela comunidade científica” e foram-lhes atribuídos vários prémios, dos quais o dos Direitos Humanos da Assembleia da República, em 2019, e o da Integração de Cuidados em 2023.

“Nós vivemos num mundo em que a linguagem é difícil, tudo é muito informatizado, muito burocrático, e as pessoas têm dificuldades em movimentar-se no meio desta confusão que é o nosso mundo”, expõe a diretora técnica. Com isso em mente, o projeto já ajudou mais de dois mil idosos desde a sua criação, com cerca de 300 só este ano, até maio. O futuro passa agora por envolver cada vez mais a comunidade e está em curso fazer-se o “Ser cuidador comunitário por um dia”, que poderá contar com a presença do presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa.




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