Segunda-feira, 14 de Outubro de 2024
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Adérito Silveira
Adérito Silveira
Maestro do Coral da Cidade de Vila Real. Colunista n'A Voz de Trás-os-Montes

A minha rua era uma nave de sonhos

Lembro uma rua e um lugar que ainda hoje me fazem pensar silenciosamente.

Casas de rés-do-chão davam-lhes linhas sinuosas como bêbados a vaguear que chegavam a casa a desoras, e em casa esperava-os as mulheres e os filhos que batiam as horas pela fome, e um velho relógio em casa soava as horas cansadas, horas passadas… Que é agora desse tempo? Que é das meninas nas varandas debruçadas com as saias aos folhos?
Aquela rua e aquele lugar eram uma bênção, reza nas horas das trindades, orações na hora do trabalho.

Antigamente havia um coreto no meio do largo, um largo com um ruflar de asas constantes, porque os passarinhos gostavam daquela rua e daquele lugar e isso servia de mote para que em qualquer espaço se ouvisse um instrumento a tocar, uma jovem a bailar, um casal a namorar, os beijos eram fluidos, estendidos pelas faces como trepadeiras que subiam e chegavam às janelas e aos telhados.

Naquela rua e naquele lugar havia um banco partido onde um velho descansava com um cigarro na boca, um velho com canseiras tantas, um velho que às vezes comia pão e bebia vinho, um velho com ideias tontas porque era viúvo há décadas e sentia-se como vetusta árvore que ia murchando como flores já caducas, como caminho onde já ninguém passava.

Naquela rua e naquele lugar havia um corpo fino de menina, um corpo delicado, um corpo muito cobiçado, corpo macio, modelado, desejado. Um velho rico e avaro encheu-a de beijos e de promessas e a menina fina e delicada foi mãe ainda com idade de ser amada, com idade de ser menina, com idade de ser mimada. O velho era feirante e logo abandonou a menina mãe, e fugiu, fugiu para um lugar errante onde pelos remorsos enlouqueceu e foi parar ao asilo dos velhos… ali levou pancada de outros loucos pelo que sabiam ter acontecido… o velho berrava de noite invocando o nome do filho que nunca chegou a conhecer.

No meu sono e no meu dormir, aquela rua e aquele lugar flutuam a cada passo e eu ali me enlaço de olhos embaciados como névoa chegada de outono, aquela rua e aquele lugar eram uma espécie de nave de sonhos onde havia danças, alegrias, esperanças, corpos que se mexiam, corpos adolescentes com reflexos de lua, corpos inocentes e lindos como corpo que flutua em água corrente. Naquela rua e naquele lugar, eu nasci e me abracei em sonhos tão reais que neles me alonguei. Asas em voos de liberdade quem nunca as teve? Naquela rua e naquele lugar havia música, ouvida em paisagens de outrora, agora sentidas tão intensamente e sempre à mesma hora, que a música, não sei se me faz rir, se quer ficar ou quer ir embora. Naquela rua e naquele lugar, já nada é como dantes porque a vida irremediavelmente segue o seu curso, a sua via-sacra, tantas vezes tortuosa que quase mata.

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