Quinta-feira, 20 de Março de 2025
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Adérito Silveira
Adérito Silveira
Maestro do Coral da Cidade de Vila Real. Colunista n'A Voz de Trás-os-Montes

A serenata do Jeirinhas

Em noites de lua cheia, o vale de Mateus enchia-se de encanto, abençoado pelo uivar dos lobos que, virados para o céu, marcavam o seu território.

Os sons despertavam Santa Sofia, lá no alto da capela. Pela manhã, os primeiros acordes da banda filarmónica quebravam o silêncio, deslizando suavemente pelo ar acordando a aldeia.

O clarinete vibrante do Francisco- Sapateiro, a requinta irrequieta do Aníbal Martins, o bombardino do António Lopes-Furão, as trompas de Eugénio Silveira e Armando Zarelho, os saxofones do Valter Silveira e do Joaquim do Raul, os contrabaixos do ti António Miguéis e do Zé Domingos Martins, os pratos e bombo do Zé Barrias e do Chaleco, bem como os assobios do Manel Fonseca, criavam um conjunto sonoro irresistível.

As crianças brincavam no largo, envolvidas por esses sons contagiantes.

A música aliviava as dores da miséria, sendo também mensageira de amores e paixões que as palavras não conseguiam traduzir. Hoje, poucos em Mateus não carregam na memória esse tempo, quando os sons das bandas filarmónicas preenchiam cada canto, cada nicho, cada sonho de luz e de esperança.

A música em Mateus continua a ser vista como arte espiritual, fundamental na formação cívica e social dos jovens, muitos dos quais espalhados pelo país, no entanto fiéis às suas origens.

Um dia, sentado na esplanada do café da Senhora Eugénia, no Largo de Mateus, deixo-me levar pelas recordações. E de repente, quase ouço os gemidos do trompete do Manel Jeirinhas, em sons estrepitosos, tipo corneta, e que traduziam as suas angústias.
Virado para Tojais, ele tentava levar seus sentimentos à moça que, na noite anterior não lhe abrira a janela. A serenata foi acompanhada pelo latir de um cão rafeiro, que, confuso, se atirou às pernas do Jeirinhas, mordendo-o sem piedade.

Com a dor estampada no rosto e o andar estropiado, regressou a Mateus sem olhar para trás.

Aos amigos que aguardam por notícias, justificou-se pouco convicto: “sabem, a casa da moça estava guardada por um cão que mais parecia lobo, certamente que o rafeiro não gostava da minha música…”

Tonho Estriga, sempre pronto a provocar, respondeu com um sorriso malandro: “sabes Manel que as meninas de agora não querem ruídos de fanfarra. Os que as encanta, são modinhas que as despertem para os infinitos mistérios do amor e da paixão…”
Manel Jeirinhas, coçando o pescoço, não consegue responder e, curvado, segue o caminho tortuoso de casa.

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