Segunda-feira, 13 de Janeiro de 2025
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Adérito Silveira
Adérito Silveira
Maestro do Coral da Cidade de Vila Real. Colunista n'A Voz de Trás-os-Montes

Cantora desafinada

Nem todos podemos cantar bem…mas há limites. No coro da aldeia o professor consumia-se com a cantora.

Desafinava como uma desalmada. No entanto, a dita nem sequer era cantadeira, pois da sua boca saíam apenas estrídulos estranhos quando procurava cantar. Achava-se, no entanto, vedeta, pois o seu corpo meneava-se sem ritmo e a cara espelhava alguém radiante de felicidade. O professor olhava para ela de forma recriminatória mas a suposta cantora mais bamboleava o corpo. Os colegas ao lado, subtilmente, iam-se afastando dela porque a suposta cantora incomodava mais, ora com os sopros assobiados, ora com nervosismo do corpo… 

No final de uma canção, ela, lesta e diligente, boca aberta de sorrisos, espampanante no olhar aborda o professor: “ Professor que tal? Estivemos bem, num estivemos?” O professor tentando controlar os ímpetos respondeu-lhe: “ Se assim continuar a cantar, deve procurar integrar um coro profissional…” Agora, os olhos da senhora, quase que rebentavam, brilhavam ainda mais, eram a estrela de todas as estrelas, a diva maior de uma constelação dominante…

Não tinha a noção da afinação, não tinha voz, não tinha ritmo, não tinha nada que a identificasse como alguém musical. Tinha sim: um ego inflamado de vaidade, alguém que dizia estudar as músicas em casa e até fazia revisões teóricas que as mostrava vitoriosa ao professor, só, só para o impressionar. E o professor sofria, sofria mas engolia, engolia. Engolia para dentro porque a senhora, era portadora de uma bonita idade, bem vestida, bem arreada, bem maquilhada…Mas, apenas isso, porque da sua boca saíam foguetes estilhaçados de gabarolices, girândolas matizadas de vaidades… 

Esta situação bizarra acontece em muitos grupos corais…o sentido de grupo, raramente funciona. Não é fácil cantar em harmonia…Cantar em harmonia pressupõe, no dia a dia, a que cada um de nós saiba estar perante o outro, saiba ouvir…ouvir é a palavra de ordem. Intervir, só quando achar que oportuno e útil…o povo português é fraco ouvinte, fala pelos cabelos, pensa pouco, tagarela, comprometendo o valor do silêncio e a harmonia da vida. 

O coro da aldeia sem esta voz perde a sua identidade, a sua referência. A senhora vai sair, tratar das quintas e dos bichos, das cabras e do passarelho. O coro da aldeia sem esta voz irá ganhar outra alma, outro entusiasmo e outra esperança para um futuro melhor.

O tempo da nossa vida é irreversível, mas o prazer de cantar existe porque nos faz esquecer do tempo do relógio e do quotidiano para nos fazer ter acesso a uma espécie de eternidade e a música é o nosso protesto contra o irreversível, um meio de revivermos o mesmo no outro…a música deve ser sempre o sinal da nossa voz ou a voz no nosso coração, cantando ou não afinado.

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