Sábado, 5 de Outubro de 2024
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Adérito Silveira
Adérito Silveira
Maestro do Coral da Cidade de Vila Real. Colunista n'A Voz de Trás-os-Montes

Dias de festa

Naquele domingo havia entusiasmo na aldeia. No largo, o povo ia conversando, trocando sorrisos desenhados em semblantes de oiro, sorrisos rasgados na ternura dos olhares.

Um músico de gaita, exibiu mesmo uma moda cheia de ritmo. E esgalgado, um rapaz de boina olhando para uma moçona bem aviada de ancas, agarrou-a freneticamente rodopiando alguns movimentos atabalhoados…naquele momento formou-se uma dança de raparigas, com risos soltos e transbordantes, lábios vermelhos e olhares palpitantes na procura de cavalheiros para bailar.

Antes da missa, no soalheiro largo da igreja as palavras e os movimentos cruzavam-se e interagiam no respeito da cumplicidade do lugar…os homens, na passagem do reverendo, já ancião, curvavam-se com cortesia descobrindo as cabeças, saudando o prior que lhes respondia com uma vénia breve e lhes dizia: “ Bons dias a todos, vá a cobrir.”
A missa era sempre uma festa do povo que perscrutava a homilia em espírito profundo de fé e fraternidade. As toadas dos cânticos enchiam o templo sagrado, e o coro paroquial subia de tom, exultando e contagiando a assembleia que o ouvia.

A aldeia em que o clérigo pastoreava o seu rebanho, assentava no despertar constante de vocações. Aos domingos depois do preceito religioso, as tabernas da Senhora Libânia e Eugénia, inundavam-se de pessoas, ouvindo-se aí narrativas e epopeias de grande imaginação. Eram espaços que serviam como tertúlias artísticas. Também aí tinham lugar palavras chistosas, de verbo fácil que excediam os cânones da polémica, travando-se os homens de razões…e quando o vinho fermentava nos estômagos, era fácil o desencadear de pancadaria, acorrendo as mulheres em gritos de histeria…e em disputas encarniçadas, umas puxavam os cabelos às outras na tentativa de mostrarem aos seus “homes” a máscara da fidelidade, o cunho cerrado de um amor que muitas vezes não existia.
Mas quando se falava de arte, os homens pesavam a sua alma, sentindo-a com aura de poeta. Quando se falava do passado, “melancolia” era uma palavra que emocionava e humanizava cada um.

Ao toque das ave-marias, algumas almas descobriam-se e desbobinavam difíceis e intragáveis latinórios, libertando-as do peso de um trabalho árduo e de contas para pagar.
Nesta altura, apaziguavam-se as rixas, e revolviam-se os pensamentos: uns santificados, outros injetados de promiscuidades e cobiças da mulher alheia.

Nesta atmosfera reconciliadora, os olhares subiam na esperança de uma paz duradoura, procurando-se as razões para o desabrochar dos afetos, paradigma do povo de Mateus.
Já em casa, um sopro renovado de vida pairava em cada esquina.

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