Logo, festejámos os cinquenta anos da nossa democracia, regime que teve a mesma extensão temporal que teve o regime anterior a esse, o de ditadura nacional que evoluiu para o chamado “Estado Novo”. Altura para relembrarmos também agora a imposição do regime que nos governou de 1911 a 1974.
“As circunstâncias políticas da época, o parlamentarismo doentio desligado das realidades sociais do país, a incapacidade para avançar fosse o que fosse nas alterações da estrutura social, deixavam antever o monstro que, nas vésperas do 28 de Maio, aparecia como solução inevitável e salvadora e também como desfecho lógico para a crise”.
In “Diário de Lisboa”, de 27 de maio de 1976
O “Estado Novo” teve quociente máximo na influência de um homem que conseguiu reunir as peças de um puzzle confuso e problemático que vinha do tempo em que o rei D. Carlos e seu filho Luís Filipe foram assassinados. Ainda que D. Manuel II tenha sido rei, o último da dinastia de Bragança, depressa surgiu a revolução republicana e desse modo se extinguiu a monarquia em Portugal. A implantação da República, a exaltação de valores patrióticos que ela envolveu, com partidos e personalidades de grandes convicções, mas de pouca clarividência, o latente estado de instabilidade perigosa e de lutas intestinas entre todos eles, o retrocesso civilizacional foi um facto em que a confusão aumentava quando a Europa se debatia com problemas políticos que se julgava poderem ser atacados e resolvidos com o recurso a ditaduras musculadas que se faziam sentir, essencialmente na Espanha de Franco, na Itália de Mussolini, na Alemanha de Hitler e de outros inseguros países satélites dessas grandes nações, como o nosso. Nessa altura foi proferida a frase célebre do regime português de então: “Tudo pela Nação, nada contra a Nação”.
À PROCURA DE UM NOVO SEBASTIÃO
O golpe militar que redundou na revolução de maio não nasceu por acaso. Antes da data indicada pelo sucesso da operação militar, no dia 28, já era expectável que ela acontecesse.
“O movimento de 28 de Maio de 1926 constituiu uma mudança de sistema dentro dos moldes que se praticavam desde o triunfo do liberalismo: por uma revolução. A unanimidade na recusa é a sua primeira caraterística. Segue-se, depois, uma outra ideia-chave: a necessidade do reforço do poder”.
Jorge Borges de Macedo, em “O Século” de 2 de junho de 1986
Desde o exercício do poder por parte de diversas correntes políticas (na realidade, uma profusão excessiva de movimentos, partidos e personagens sequiosas de intervenção mais ou menos descontrolada ou de retaliações que muitas vezes descambava para a violência) com obstáculos, curvaturas, declives, desvios e escorregadelas que alimentavam a desconfiança foi a agitação que emergiu e com ela a falta de pulso para reafirmar caminhos de paz e de progresso pelos quais tanto se esgrimia, sem qualquer resultado.
Se a agitação dos políticos tinha a ver com o poder e suas nuances de afirmação, o povo sentia a falta de tudo o que pudesse reunir condições para que tais desideratos se afirmassem. O desagrado era geral, os meios económicos falhavam enormemente, o trabalho era escasso e mal remunerado, o analfabetismo era a situação dominante nas massas populares, as famílias cresciam em número de elementos e por cada filho nascido correspondiam novos e mais difíceis meios de subsistência. No meio de tantas guerras no governo, no parlamento, nas estruturas políticas e corporativas do país, as pessoas não tinham ilusões quanto à necessidade de mudança, na vinda de um Sebastião que não o do nevoeiro, mas o do conhecimento das condições de vida que afligiam um país inteiro. O certo é que esse Sebastião estava mesmo para vir.
“Salazar tornou-se o verdadeiro obreiro da transição, chegando à chefia do oitavo governo da Ditadura Nacional em 1932”
Luís Farinha, in “Visão História” de maio de 2016
Preparado nos meios católicos e nos bancos da universidade de Coimbra, mostrara argumentos para vir a ser ministro. Foi convidado e nomeado por duas vezes para vir a ser o responsável pelas finanças do país, mas veio também o sentimento do ambiente da instabilidade e do tesouro público vazio, acabando por se demitir nas duas ocasiões em que aceitou a pasta, fazendo exigências que pareciam à plêiade de políticos que gravitava nas esferas da decisão absolutamente incomportáveis.
Havia também a ideia mais ou menos generalizada de que só duas entidades poderiam concorrer para o fim do clima de guerra civil permanente: a Igreja Católica e o Exército. A primeira para reorganizar e incutir valores espirituais e morais na sociedade tão descrente. O segundo para entrar em ação e resolver o problema abissal dos interesses próprios em detrimento dos verdadeiros interesses das massas populares que só elas poderiam fazer avançar o país.
DE BRAGA PARA SUL, COM CARMONA À ESPREITA
O ano de 1926 foi fulcral para as mudanças necessárias e exigidas. Com duas mudanças na Presidência da República (Manuel Teixeira Gomes e Bernardino Machado) e com a degradação total do 45º (!) governo da I República, presidido por António Maria da Silva – o que traduzia de forma inegável e incapacidade de as forças políticas promoverem a estabilidade – no dia 2 de fevereiro, registou-se uma tentativa revolucionária de direita, inconformada com os rumos sinuosos do republicanismo mais ou menos radical, com os partidos, os sindicatos, o movimento anarquista e outros comportando monárquicos desejosos de restaurar o poder real. Nessa tentativa (“Golpe de Almada”), uma força civil apoiada por outra militar invadiram e dominaram os oficiais da Escola Prática de Artilharia de Vendas Novas. A falta de comando dos revoltosos levou essa expedição ao fracasso, mas abriu-se uma via para a possibilidade de, bem orientados e comandados, o golpe poder repetir-se.
O general Gomes da Costa, figura proeminente do Exército português, foi convidado para isso. Duas vezes, mas das duas vezes recusou aliar-se às intenções de Mendes Cabeçadas. Veio a aceitar fazê-lo após a insistência do comandante. No dia 28 de maio, tropas comandadas por Gomes da Costa partiram de Braga, pretendendo avançar sobre Lisboa. A chegada à capital não seria imediata (só aconteceu em 6 de junho) porque ao grupo se juntariam guarnições militares de outras cidades e regiões (Vila Real, Porto, Coimbra, Viseu, Santarém) comandadas por oficiais superiores conservadores. Para além de Cabeçadas (em Lisboa), também o apoio ao movimento saído de Braga era apontado de Évora, onde estava o general Óscar Carmona a coordená-lo a partir da zona sul.
Tudo ocorreu como os revoltosos pretendiam, Bernardino Machado destituiu o governo etransmite os poderes presidenciais a Mendes Cabeçadas que assumiu também a chefia do primeiro governo da que foi designada Ditadura Nacional. Tal como em abril de 1974 (formação da Junta de Salvação Nacional), em 1 de junho de 1926 formou-se uma Junta Governativa constituída por Mendes Cabeçadas, Gomes da Costa e Gama Ochoa. Gomes da Costa não concordou com a formação desta Junta, pretendia Óscar Carmona no lugar de Ochoa mas foi referida a influência daquele na região sulk, onde havia inconformismo permanente dos comunistas que não aceitavam o decurso dos acontecimentos e o regime de ditadura.
ENTRADA TRIUNFANTE EM LISBOA
No dia 6 de junho, Gomes da Costa entrou triunfante em Lisboa, descendo o eixo central da cidade seguido por cerca de 15 mil soldados que o acompanharam do norte do país e de outros da região sul que se tinham concentrado em Sacavém, esperando-o.
O último episódio estava a chegar: Gomes da Costa e os seus muitos apoiantes apresentaram ao executivo de Mendes Cabeçadas um conjunto de exigências a que o chefe do governo não responde, pretendendo apresentar alternativas. No dia 17 de junho, o general Gomes da Costa desfere um novo golpe militar contra Cabeçadas, demitindo-o e assumindo-se, com o apoio dos seus correligionários, presidente da nova República, a república da ditadura nacional que se confrontou ainda com uma tentativa de derrube por parte de rebeldes acontecida em Chaves.
Em 25 de março de 1928, Óscar Carmona foi escolhido para Presidente da República, sem oposição. Em 18 de abril desse ano,toma posse o governo da ditadura (o 4º, depois do fim da I República) chefiado pelo coronel Vicente de Freitas, era considerado republicano da ala mais conservadora. De pronto, Oliveira Salazar era nomeado ministro das Finanças. A 5 de julho, Salazar tomou posse como chefe do governo. Aí começava, na prática, o regime do Estado Novo avalizado pela Constituição de 1933 e que duraria até 25 de Abril de 1974, alicerçado em formas opressivas de gestão que colocaram ponto final à instabilidade da I República.
“A partir deste momento, Salazar aparecerá como o verdadeiro dono e senhor de Portugal, ao reduzir drasticamente as despesas, equilibrar o orçamento eliminar os antigos métodos de políticos corruptos. Um fator vai ser fulcral nesta larga permanência do ditador no poder: a sua habilidade política e a persistência em defender causas e valores combatendo quem os rejeite”.
João Medina, in “O Jornal”, de 1975