Sábado, 25 de Janeiro de 2025
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Adérito Silveira
Adérito Silveira
Maestro do Coral da Cidade de Vila Real. Colunista n'A Voz de Trás-os-Montes

Ainda hoje, aquela é a minha casa de ensaio

Gozando de um curto intervalo, sento-me na orla do muro, descontraído.

“Álvaro de Matos- mais conhecido por Álvaro Rainho- deve estar a passar por aqui”, cogito silencioso, enquanto espero pelo artista que despertou em mim subtilezas da história da música e que em conjunto, descobríamos segredos e tesouros da criação musical.

Na casa de ensaio, o carrilhão vibra, afirmando-se na sua identidade sonora inconfundível.
O Arménio, recriando-se, plasma-se na força sedutora do instrumento. A articulação rápida dos martelos prende-se à magia na procura da perfeição.

Os sons do carrilhão na “Aguarela Popular”, como que enfeitiçados, ampliam-se dentro da sala, e fora dela, espraiam-se como corrente magnética e chegam longe até à igreja.
– Com os diabos, não sabia que o rapaz tocava tão bem- atira Francisco Claudino.

Naquele instante, o meu pensamento dirige-se apenas ao homem que há de aparecer em breve, trazendo melodias intemporais, fragmentos de óperas, zarzuelas, árias, referências exponenciais da história da música na sua arte pura. Álvaro de Matos possuía uma sensibilidade aguda para a música e enchia-se de alma ao falar dela.

Insisto na espera. Enquanto isso, vou recordando o músico, o cantor que nas missas se destacava com arrojadas subidas oitavinas numa voz cristalina, desprendida, quase celestial. Na percussão, o vibrar dos pratos e do bombo eram a força da música no seu ritmo absoluto, no rigor da medida do tempo e do compasso. Dava gosto vê-lo tocar!

Lembro-me ainda do trombone por ele tocado, onde o exibia com brilho e imponência.

Álvaro de Matos confessava ter prazer quando falava comigo. Na verdade, ambos nos embrenhávamos serenamente em longuíssimas conversas sobre música.

Alcanço ao longe o homem esperado. Vem em passo cadenciado e seguro. Traz a música dentro de si. Já mais perto, os nossos olhares quase se tocam, cheios de luz, confrontados na música até aos limites da ativação do corpo e da alma como parte integrante dos devaneios que estão prestes a acontecer.

“Que força bate nos seus ossos e na sua alma? Que força alimenta este homem de pensamentos iluminados?” Interrogo-me.

Na casa de ensaio, em frente a um lameiro, os sons faziam lembrar pessoas de um passado distante, onde a música de outros tempos ressoava dentro de cada habitante. Ali respirávamos o conforto dos que já tinham partido e que deixaram em nós o melhor das suas vidas.

Depois da sua partida, nesse fim de tarde, as suas palavras ecoaram vivamente por todo aquele espaço circundante.

No pequeno riacho, em frente à casa de ensaio, ouvia-se o coaxar de rãs e o cantar divertido de cigarras. Escutávamos a linguagem viva da Natureza e os corações que encerravam saudade e amor, paixão e sofrimento. Ali, naquele lugar abençoado, não nos deixávamos adormecer para que a alma não saísse do corpo e não perdêssemos o eco positivo daquele tempo presente.

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