Sexta-feira, 13 de Dezembro de 2024
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João Ferreira
João Ferreira
Investigador, Professor do Ensino Superior

“É, ou não é, cancelamento?”

Após recurso de César do Paço, o Tribunal da Relação de Lisboa deu ordens à Wikipédia para apagar, do seu sítio na internet, quaisquer informações sobre a associação entre César e o partido político Chega, incluindo a de um financiamento de 10 mil euros (o máximo legal).

Interessa, contudo, assinalar que o Tribunal não declarou que a informação contida na Wikipédia fosse falsa. Por incrível que pareça, o que Tribunal diz é que não ficou provado que os factos se tenham tornado públicos “por decisão própria” [de César] e que a sua divulgação contém o potencial para “desencadear efeitos discriminatórios”.

A legalidade da decisão do Tribunal não a vou contestar, não sou jurista. Mas a sua futilidade penso que é clara para todos. Os factos já circulam na internet desde o trabalho jornalístico da SIC, em 2021, e por aí continuaram. E mesmo o sucesso do recurso interposto por César à Wikipédia mais não fez do que reforçar o ciclo noticioso. Fico com a sensação, de que a Enciclopédia Livre foi maltratada, censurada, penalizada. Foi “cancelada”, como se diz nos dias de hoje.

Discorda? Vamos com calma. Primeiro vou estabelecer aquilo a que me refiro quando uso a palavra “cancelamento”. Se eu disser uma coisa errada ou ofensiva e o leitor expressar o seu desacordo comigo, por exemplo, insultando-me, não penso que isso seja cancelamento. Para o leitor me cancelar teria de me punir de alguma forma, causando-me um dano reputacional, financeiro ou outro, suficiente para ter um efeito dissuasor. Não sei quão poderoso é o leitor, mas normalmente é necessária uma comunidade mais alargada para efetuar este tipo de castigos, um grupo que partilhe da sua opinião e que exija a minha punição. O que me leva a um segundo ponto. O cancelamento não é exclusivo de grupos com organização insipiente e que se alavancam nas redes sociais. Na verdade, outros coletivos mais organizados, instituições até, podem cancelar. Quer exemplos? A forma como o governo português vetou o livro de José Saramago O Evangelho segundo Jesus Cristo ao Prémio Literário Europeu foi uma clara punição, por desacordo quanto ao conteúdo do livro. Saramago, que por divergências políticas terá por sua vez participado em 1975, mais ou menos diretamente, no “afastamento” de jornalistas do Diário de Notícias. Ou ainda como a Igreja Portuguesa tentava cancelar a emissão de peças humorísticas de Herman José, incluindo A Última Ceia, nos anos 90. O que me leva a um terceiro ponto, de que todas as “culturas” cancelam, sejam de direita ou de esquerda, mais conservadoras ou mais progressistas, mais antigas ou mais recentes. E que, na verdade, até os mais libertários de entre nós concordam com algum tipo de cancelamento, como são bom exemplo os limites legais ao discurso que incite ao ódio racial. E que aqueles que e se indignam com a “cultura” do cancelamento, o fazem não por zelo libertário, mas simplesmente porque não concordam com a nova lista de atos canceláveis.

Dito isto, a Wikipédia mantém a informação sobre César online. Será que vai interpor recurso? Não sei. Mas dizem que há quem não se resigne em ser cancelado.”

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