Mesmo ao lado, deslizavam fulgurantes sons no acordeão do Benjamim. O “Baleia” no flagelo das dores vociferava: “cala lá o maldito realejo, vai tocar a sanfona para o loija dos recos”.
Chega o Dr. Otílio, chamado pela tia Lúcia, através do telefone da senhora Libânia.
– Então que dores são essas, homem? – Ataca o cirurgião com o seu ar preocupado e protetor.
E o Baleia gemia mais… – Irra, há muito que tens isso?
– Isso o quê, senhor doutor? Só sei que chegou a minha hora, estou nas lonas, vou morrer.
– Deixa-te disso, homem, eu vou mas é curar-te. Só tens que ter juízo daqui por diante e fazeres greve à bebida, sobretudo à aguardente logo de manhã.
– Doutor, eu sei o que tenho e quando chega a maldita enroscada nas sombras, já não podemos fazer nada. Ai, ai, já nem o caldo de galinha me entra pelas goelas.
O Dr. Otílio fala com o doente durante algum tempo, abre a mala dos medicamentos, observa-o atentamente, apalpa-o aqui e ali. António Baleia geme como se o estivessem a esfolar vivo… a boca crispada nos cantos era assinalada por um forte e preto bigodaço, que lhe chegava quase aos olhos mirrados das dores e da bebida.
– Aqui, não posso fazer mais nada. Vamos já para a minha Casa de Saúde e vais comigo no carro de praça do Lourenço que está à nossa espera.
O Lourenço acelera quanto pode, inundando de fumaraça a estrada. A canalha munida de flechas, arcos e fisgas tenta acompanhar a geringonça até à dona Marquinhas. A buzina atroa os ares e até parecia que o veículo já levava um morto anunciado, mas o doente ainda não ia desta porque o médico nunca desamparou o Baleia até que ele ficasse curado, levando-o ele mesmo no regresso a casa.
Era assim o Dr. Otílio, um verdadeiro médico de família, um homem de caridade que se confundia com o povo: um filantropo, alguém respeitadíssimo pela sua dignidade humana e cortesia. Na sua Casa de Saúde, Dr. Bissaya Barreto, os doentes mais necessitados eram por ele tratados com cuidados especiais, suportando ele os custos dos que não podiam pagar e estes eram muitos.
Parei nas minhas cogitações e prendi-me no movimento rápido das raparigas que regressavam da apanha tardia das maçãs no Ribeiro, junto à azenha, propriedade do conde de Mateus.
E elas cantavam bem, toadas brejeiras que faziam corar o ti Vitorino, responsável daquele bando de raparigas. A música estava-lhes no sangue. E o “Baleia”, ali bem perto, animava-se agora com as cantilenas que o faziam despertar para os insondáveis mundos da sua juventude. Nessa manhã, o dia clareava radiante e, ainda deitado, os buracos nas paredes luziam por entre a telha vã.