Portugal tem tido múltiplos desafios nos últimos anos. Ao nível dos municípios, como é que tem corrido?
Os últimos anos foram de conquistas para os municípios. Entre 2015 e 2019 repuseram-se muitos dos cortes e medidas que condicionavam o poder local, que vinham do tempo do governo do PSD e da Troika, nomeadamente nas áreas orçamentais, na autonomia municipal, na lei das finanças locais, na contratação de recursos humanos e na agilização de procedimentos de contratação pública. Depois de 2019 julgo que se gerou um novo impulso que permitiu uma maior autonomia na descentralização e a resolução de muitos problemas que afetavam os municípios, com a transferência de competências e de meios financeiros para os municípios em diversas áreas, como por exemplo na saúde, na educação e na ação social. Passou a haver um cumprimento integral da lei das finanças e uma predisposição para a revisão dessa lei. Há, inclusive, uma comissão que tem como objetivo, junto do Ministério das Finanças, fazer essa revisão. Houve também a resolução de um problema relacionado com a ADSE dos funcionários municipais, um encargo que era pago de forma diferente pelo estado central e pelo estado local. Diria que foram anos de retoma e de reforço de autonomia para os municípios, mas obviamente que continua a haver muito para fazer e o caderno de encargos para o próximo governo é imenso.
Sendo assim, quais são os desafios dos municípios para os próximos anos? O que é que falta fazer?
Falta aprofundar a descentralização, quer nas áreas em que já foi efetuada quer em áreas que julgo importantes avançar, como na saúde, de forma a que os municípios possam, de facto, fazer a diferença e não sejam, apenas, caixas de correio ou tarefeiros. E temos outras reivindicações, nomeadamente o avançar com a regionalização do país, a criação de uma entidade inspetiva exclusivamente dedicada às autarquias locais, uma entidade que terminou durante o governo do PSD e que faz com que qualquer denúncia anónima vá parar ao Ministério Público, que muitas vezes não conhece o funcionamento das autarquias e cria muito alarido. Esta entidade permitiria ver aquilo que são questões de âmbito criminal, que devem seguir para o Ministério Público, mas ver, também, as questões que não têm por que seguir para o Ministério Público. Achamos, também, que é necessário criar condições para o lançamento de procedimentos concursais para atribuição de concessões de energia elétrica de baixa tensão, um processo que está atrasado cerca de quatro anos.
Julgamos que é necessário compensar os municípios pela instalação de centros electroprodutores promovendo uma solução para todas as energias renováveis. Exigimos que sejam considerados e repensados os valores de taxa de resíduos, ou de tarifas de sistemas em alta, porque são valores que cresceram mais de 40% nos últimos anos, sendo que em alguns casos refletem-se junto dos consumidores e noutros são as autarquias que estão a assumir esses prejuízos. Defendemos uma nova lei das finanças locais, uma exigência que fazemos há muito tempo. Julgamos, também, que a participação dos municípios nos impostos do Estado deve regressar aos níveis do período de pré-Troika, voltando a corresponder a cerca de 25,3% da média aritmética do IRS, IRC e IVA, sendo que atualmente esse valor está nos 19%. Julgamos que é, também, necessário reforçar o papel dos municípios no Portugal 2030 e aprofundar as áreas de descentralização, descer o IVA das refeições escolares e da iluminação pública para 6%. Há, efetivamente, um conjunto de reivindicações que continuam em cima da mesa e que não estão resolvidas. Temos expectativa que tal venha a acontecer, sobretudo a participação dos municípios nos impostos do Estado.
“Portugal é, talvez, o último país da União Europeia que não é regionalizado”
Falou da necessidade de ser criada uma nova lei das finanças locais. Em que modelos?
A nova lei das finanças locais deveria, logo à partida, permitir que os municípios tivessem uma outra participação nos impostos do Estado (IRS, IRC e IVA). Devia ter mecanismos de compensação para os territórios que têm índices de população mais baixos, porque uma coisa é ter transportes públicos em Lisboa, em que por cada quilómetro percorrido existem mil passageiros, e outra é ter transportes públicos em Mirandela em que, se calhar, por cada mil quilómetros há 30 ou 40 passageiros. Contudo, todos os passageiros merecem ter transportes públicos. Outro exemplo é na área da água e do saneamento, em que há zonas em que temos de fazer condutas de quilómetros para abastecer um número muito mais reduzido de pessoas. Tem de haver mecanismos de compensação, ou seja, existir uma distribuição diferente das verbas pelos municípios.
A descentralização está no terreno. Na sua opinião, este modelo é suficiente e substitui a regionalização?
Não, acho que é um caminho, mas não é, claramente, suficiente. Julgo que a ideia era a seguinte: colocar nas CCDR’s um conjunto de funções que um governo regional deveria ter no futuro, no âmbito da cultura, do ambiente, do ordenamento do território, na aplicação de fundos comunitários, percebendo que quem dirige a CCDR, atualmente, não é eleito de forma universal. Neste governo “regional” que são as CCDR’s já existem funcionários para áreas da educação, saúde, agricultura, florestas, o problema é que uma parte dos dirigentes não são eleitos por todos nós, são nomeados. Neste momento, os presidentes das CCDR’s são eleitos pelos autarcas da região, presidentes de câmara, vereadores e membros das Assembleias Municipais. Porque não deixar a população decidir? Porque não deve o presidente da CCDR prestar contas? A descentralização permite acabar com alguns mitos em relação à regionalização, é um processo experimental. O modelo das CCDR’s deve ser estudado, aprofundado e aplicado e servir de base para a regionalização.
Já se percebeu que é a favor da regionalização. Porquê?
De forma muito sintética, acho que quem está no território conhece-o bem e saberá escolher e governar melhor do que quem está no Terreiro do Paço. Acho que a repartição de recursos seria diferente, nomeadamente a aplicação de fundos comunitários. Entendo, também, que deve haver um plano intermédio entre as autarquias e o poder central para discutir e aplicar algumas medidas de âmbito regional. Portugal é, talvez, o último país da União Europeia que não é regionalizado. Portugal e Grécia eram os únicos, mas a Grécia já avançou e a pergunta que eu faço é: se todos os outros estão regionalizados, e Portugal e Grécia são, curiosamente, os países com os piores níveis de desenvolvimento, será que a questão da regionalização é apenas uma coincidência? O facto de não estarmos regionalizados é, certamente, um travão para o nosso desenvolvimento.
O que poderá ganhar o interior com a regionalização?
Se calhar se tivéssemos a regionalização em prática não se utilizariam fundos comunitários para alargar o metro de Lisboa, porque Lisboa já é uma área fora da convergência, porque tem um rendimento per capita superior à média europeia. Com a regionalização, cada região teria os seus fundos próprios e poderia aplicá-los de forma mais funcional e racional, de acordo com as necessidades do território.
Tivemos, recentemente, eleições legislativas. Acredita que a regionalização poderá avançar nos próximos anos?
A regionalização estava no programa eleitoral do Partido Socialista e julgo que também estava no programa da CDU. É sempre anunciado como algo que devemos alcançar, nomeadamente pelo PSD e, portanto, julgo que se os programas eleitorais fossem respeitados, a regionalização seria para avançar. Aliás, se a Constituição fosse respeitada, a regionalização teria de avançar.
Ainda no âmbito das eleições, acredita que o país terá um governo estável para quatro anos?
Julgo que há condições para um governo estável, depende da postura de quem venha a formar governo, que terá a responsabilidade de saber que será um governo minoritário que deve fazer pontes com as outras forças políticas. Quem estiver na oposição terá a responsabilidade de perceber, sem violar determinados princípios e também os seus programas eleitorais, que a estabilidade é um valor importante e que a negociação é fundamental para encontrar soluções que sirvam os portugueses. A responsabilidade será dos dois lados. Vamos ver se há maturidade de ambas as partes, partindo do princípio que as promessas eleitorais são para cumprir. Estamos num novo ciclo, numa nova realidade, com novos atores partidários e um partido emergente e, portanto, é necessário que quem venha a governar e quem estiver na oposição tenha a responsabilidade de dialogar, saiba estabelecer pontes e saiba ceder. Ter um governo que cumpra toda a legislatura é importante.