Conheci-o bem tendo privado com ele ao longo de mais de vinte anos. Este reiterado convívio com personalidade tão marcante, que já me cativara através dos seus livros, revelou-me as suas qualidades humanas, a sua cultura e o seu padrão ético, que reforçaram a minha admiração. A amizade inicial foi dando lugar a um afeto crescente que o tempo consolidou e que teve uma indiscutível influência na minha formação cultural, cívica e intelectual. Foi por estas razões que na minha lição de jubilação, em 23 de junho de 2016, salientei a importância da sua companhia no meu percurso de vida. Disse então: “ Graças a Torga, compreendi melhor a essência da cultura, o respeito pela palavra e aprendi a amar o Douro, onde tenho fortes raízes paternas”.
Miguel Torga de raízes humildes, teve uma infância e uma adolescência marcadas pelas carências e pelas dificuldades: “(…) a miséria em que fora criado”. Talvez pela cruz que carregou nesses tempos foi um sofredor que cultivou uma vida modesta e austera. Não gostava de protagonismo, tendo mesmo rejeitado diversas homenagens e algumas bem significativas (recusou ser Doutor Honoris Causa pela Universidade de Coimbra). Às solicitações da comunicação social respondia que tudo estava nos seus livros: “Quem me quiser conhecer leia-me”. Os argumentos para se recolher eram simples e próprios de quem se impunha pela riqueza da escrita, pela profundidade do pensamento e pela inatacável coerência de vida. Por isso, à luz dos holofotes da ribalta, contrapunha: “O que sou, quero continuar a sê-lo privadamente; o que escrevo, quero continuar a dá-lo a conhecer sem alardes”.
A sua vocação de escritor foi um dom que recebeu e lhe deu uma sensibilidade especial para os mais insignes valores do ser humano como foi o caso da cultura que adquiriu avidamente, da literatura e das artes – “Li centenas de livros, e continuo a ler”.
Deixou uma extensa obra: poesia, prosa, contos, teatro, autobiografia e diários. Uma referência especial para a sua autobiografia, “A Criação do Mundo” e para os seus 16 diários (prosa e poesia) que nos dão uma visão muito real da sua vida de homem livre, de cidadão virtuoso, de escritor do mundo, do pensador que fez escola e do médico dedicado ao sofrimento alheio.
“A Criação do Mundo”, revela-nos a sua vida como ele próprio escolheu vivê-la e explica-o: “Todos nós criamos o mundo à nossa medida (…) Criamo-lo na consciência, dando a cada acidente, facto ou comportamento a significação intelectual ou afetiva que a nossa mente ou a nossa sensibilidade consentem. E o certo é há tantos mundos como criaturas. …”. O seu mundo custou-lhe a criar. A falta de recursos de seus pais não lhe possibilitou a continuação dos seus estudos, obrigando-o, aos 12 anos, a emigrar para o Brasil onde foi “escravo” do trabalho e passou inúmeras privações. Nada o demoveu, nem venceu, porque o seu carácter, a sua inteligência e a sua tenaz força de vontade triunfaram e fizeram dele um dos maiores escritores de língua portuguesa do século XX.