Continuando com a análise do livro “Uma Vida, Duas Vidas…”, diremos que não é um livro sobre ciência nem foi isso que se pediu aos seus autores.
Aqui, os heróis são os doentes – pessoas reais, com um rosto, uma família e uma vida, pobres ou ricos, letrados ou incultos, geniais ou humildes, mas pessoas. Afinal de contas, são eles a razão da nossa profissão como tão bem expressou Joseph Murray quando, em 2004, na comemoração dos 50 anos do 1º TR, lhe perguntaram se, em 1954, tinha realizado o primeiro transplante de um órgão vital para fazer história, Murray respondeu: “Nós não pensámos que estávamos a fazer história. Sinceramente nós não pensámos na história. O que nós pensámos foi em salvar a vida do doente”.
Melhorar ou salvar a vida dos doentes é, de facto, o que procuramos e o que a História nos ensinou através dos tempos.
A História da Medicina é longa, vem de há 2500 anos, e singularmente rica. Vai resistindo às agruras dos tempos e aos desmandos do progresso, porque teve e tem princípios que lhe traçaram um rumo e lhe determinaram a sua idiossincrasia.
Como já aqui referimos, sendo a medicina produto dos deuses (Apolo, Asclépio) e da cultura, deverá ser exercida com paixão e para servir o ser humano. É nosso dever preservar a magia da bata branca que ainda diz muito a quem, consumido pelo desespero, vê no médico o último lenitivo para o seu sofrimento.
A transplantação revolucionou a medicina porque introduziu, na secular relação médico-doente, um terceiro elemento – o dador. Este dador humano fez crescer a solidariedade e estimulou o altruísmo. As virtudes humanas tão presentes e tão exaltadas neste processo, como este livro, exemplarmente, ilustra, correm o risco de virem a perder importância se a ciência e a tecnologia conseguirem impor a transplantação de animais e os órgãos ou máquinas artificiais. Estes serão progressos técnicos inestimáveis que, provavelmente, salvarão vidas mas, faltar-lhes-á a alma que tem presidido a esta partilha de vida entre seres humanos na qual temos tido a felicidade de ser protagonistas.
Os testemunhos deste livro, para além das emoções que nos transmitem, vão mais longe e, assim, apercebemo-nos da noção do dever cumprido e, apesar dos insucessos, da enorme satisfação pelo trabalho realizado.
A transplantação por muitos considerada “A Gift of Life” é um dos maiores atos humanitários do nosso tempo e, por isso, também é a nossa religião e o nosso credo, o que nos faz tão feliz e justifica a nossa paixão por esta tão nobre atividade.
Que este “Uma Vida, Duas Vidas…” seja o percursor de muitas vidas.