Tinha-me telefonado à meia-noite. Entretanto aproveitando a espera, procurei ler, sossegado, um jornal…implantada no ar, uma televisão é ligada com um canal já programado há muito tempo… o gesto estava mecanizado, não importando a qualidade do programa… ali, as imagens eram aterradoras e o som atroante fazia estremecer aquele pequeno espaço. Não me concentrava na leitura do jornal… o cenário era de destruição e morte. Guerra, guerra. Desolação. A Ucrânia e a Rússia estavam na ordem do dia. Não havia ninguém a olhar para aquilo, mas o televisor ronquejava ferozmente, mostrando a guerra nas suas imagens mais dilacerantes e impiedosas.
Entretanto, chega o meu amigo que me abraça. Não lhe vi a expressão do rosto, porque a incómoda máscara a tapava, só as palavras podiam dar sentido àquele encontro tão esperado e desejado. O meu amigo também ficou preocupado com os bombardeamentos e imagens tenebrosas que do ecrã saiam. Queríamos conversar, mas estava difícil. O dono do café olhava para nós, mas não discernia da razão porque estávamos incomodados.
As imagens eram agora arrepiantes. Uma mãe agarrava dois filhos pelas mãos, fugindo de um prédio acabado de destruir. Os gritos eram lancinantes, gritos que só uma mãe os dá quando sente que pode perder os filhos. O meu amigo inquieta-se, treme de nervosismo… a televisão não deixava a que uma qualquer conversa entre pessoas fosse possível. Aquele espaço era antigamente um lugar salutar de bons convívios, bons passatempos em franca cavaqueira. Lugar por excelência de sociabilidade em que as palavras surgiam soltas e animadas sem interferências exteriores.
Fez várias tentativas o meu amigo para falar comigo.
A revolta e a insatisfação apoderavam-se de nós. Estrebuchava de raiva o Zé Manel e já de pé rosnou olhando para o dono: “O senhor não pode por essa coisa mais baixo? “ O proprietário, como inocente e pobre encolhido, piou: “ Que coisa? A televisão?” Sim, sim essa coisa que só fala de guerra, pois eu e o meu amigo queremos conversar em paz. “Entretanto, de rompante, entra uma velha estrábica e, de imediato, olha para a televisão que continuava a exibir imagens de terror. A velha declarou-se ao dono do café: “a televisão ou mostra putedo ou guerra… não há quem ponha ordem nisto? Essa é uma caixa maluca que nos põe a cabeça em franjas. Dantes era a pandemia, a seca, as desigualdades, agora anda tudo com depressões, com a cabeça pirada…”
O homem da casa olhando de boca aberta para a velha, decide o mal pela raiz. Desligou o aparelho, pegou num copo de cachaça e desbobinou vitorioso olhando para nós: “Bá, bá, podem conversar à vontade que a maldita não vos incomoda mais…
“Então Zé Manel, o que tens para me contar?”