Domingo, 26 de Janeiro de 2025
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O escritor-médico Miguel torga (2)

Como médico, Torga não foi um cientista, mas soube usar a sua enorme cultura ao serviço da arte médica.

A Medicina beneficiou com o escritor e o escritor soube aproveitar a riqueza da medicina para engrandecer a sua escrita. Esta abriu-lhe horizontes e deu-lhe a dimensão humana que, por vezes, falta, a quem, fechando-se no seu talento, vive unicamente para as artes ou para as letras, alheado do mundo que o rodeia! Ele próprio o reconheceu: “A escola que foi para mim o exercício da medicina!… Se me tivesse ficado pela ciência dos livros, seria hoje um ignorante letrado suficiente…”. Tendo consciência que a escrita era um dom que devia desenvolver e honrar, também estava pronto para acorrer ao apelo do ser humano sofredor: “Uma coisa posso afirmar: se é no balanço de um poema que elevo mais alto o espírito, é a auscultar o coração desfalecido de um semelhante que sinto pulsar o meu com mais assumida humanidade”. Mas, apesar de ser primeiro escritor e só depois médico como repetidamente lembrava, “Certamente que sou poeta antes de mais”, não deixava de considerar ambos os misteres de grande responsabilidade: “(…) essas duas vidas, ambas sagradas para mim.

Como médico, trato irmãos doentes que me batem à porta, e a quem só devo amor e amparo; como escritor, reajo contra os tartufos sãos e gordos que fazem da arte um meio para atingirem inconfessados e sujos fins”. O escritor sempre soube reconhecer a importância do exercício da profissão médica: “Graças à rainha das ciências, não só pude compreender e aceitar durante a vida a minha condição de filho da natureza (…), como ainda ter o orgulho legítimo de lhe corrigir ou completar de vez em quando as obras”. As visitas a S. Martinho de Anta, que sempre foram o lenitivo da sua vida, davam-lhe um novo fôlego: “Sempre que venho, mal entro na terra, tenho a impressão que mudo por dentro”.

E aí sim, no meio das suas gentes que ele amava, praticava o mais puro “sacerdócio” médico com gosto e orgulho, como registou no Diário IX: “Consultas e mais consultas a esta pobre gente, que parece guardar as mazelas durante o ano para quando eu venho. Ausculto, apalpo, dou os remédios e prometo a cura. Mas acabo por me sentir o beneficiário do bodo clínico. Reencontro nele o gosto do ofício, que a cidade tem progressivamente amortecido. (…)”. Cremos que Torga diluía as preocupações da escrita no exercício da medicina e as desilusões do médico na criação de um poema. E, era na medicina que, perante um ser concreto, real, recorria à sensibilidade para dar lugar ao seu humanismo: “Na minha já longa vida de médico, só tive uma preocupação: entender o sofrimento alheio (…). E confessei mais do que observei, valia-me mais do coração do que da sabedoria. Enxuguei mais lágrimas do que receitei”. É o exercício da medicina com a inteligência e com a palavra como se pode perceber nesta confissão: “Fiz da esperança a grande arma do meu arsenal terapêutico. Esperança que eu próprio não tinha muitas vezes, mas que, mesmo fingida, fazia milagres (…).” A ciência só nos ensina a técnica. É preciso saber dar esperança a quem procura a salvação. É a Arte Médica na sua pureza original.

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