Eu, e outros como eu, vivemos resignados a esta doença, habituados à sua sazonalidade e impertinência. Contudo, para mim, o problema da febre dos fenos não radica nem na iniquidade do seu nome, porque ela não causa febre, nem nos seus sintomas, que apesar de incómodos e limitantes, com o devido tratamento, são toleráveis. O pior da rinite alérgica (preferem assim, mais científico?) é o seu absurdo, a forma como o sistema imunitário banalmente confunde os essenciais e inofensivos pólenes das gramíneas com perigosos patógenos invasores. Porque sem pólenes das gramíneas não há nem trigo para fazer o delicioso pão, nem há relva para nela nos deitarmos durante os pachorrentos dias de verão. Que pobre seria a vida sem as gramíneas!
A imunidade é um mecanismo adaptativo que os organismos desenvolveram para se defenderem, detetando, atacando e eliminando tanto os agentes infeciosos vindos do exterior, como partes dos nossos corpos que se tornam malignas, como no cancro. Claro que está longe de ser perfeito e, amiúde, não consegue evitar a derrota que, muitas vezes, é a última batalha de cada ser vivo. Existe, contudo, o reverso da moeda, onde o sistema imunitário, no seu frenesim protetor, comete excessos de zelo que causam doenças, das quais a rinite alérgica é um membro, ainda assim, bastante inofensivo.
É paradoxal como o funcionamento do sistema imunitário pode ser tão bem conhecido e, ainda assim, em muitos aspetos, constituir um grande mistério. É um assunto complexo e, até, razoavelmente abstrato. Por isso se empresta a metáforas, que é a nossa maneira de conceptualizar assuntos desconhecidos e complicados, para conseguir criar sentido. Para mim é revelador que o sistema imunitário se preste tanto a metáforas militares. Basta ler um pouquinho da literatura científica. Com sistemas de defesa e de ataque, com estados de alerta e recrutamentos, com invasores e até células naturalmente assassinas. Mas se as minhas metáforas militares, sensacionalistas e melodramáticas, são conscientes, já as da literatura científica dificilmente o serão. Antes, refletem a forma como olhamos para a doença e os seus mecanismos, reforçando a forma individualista, conflituosa e bestial com que lidamos com a doença e a morte. A proteção do eu contra o invasor, o agente estrangeiro, que vem de fora seguramente com más intenções, aproveitar-se dos nossos recursos enquanto nós, pobres mortais invadidos, definhamos. Ou o traidor interno que se mantém silencioso, até ser tarde demais. É verdade que o mundo é um local perigoso. Mas, muitas vezes, pode tornar-se ainda mais perigoso quando nos deixamos levar pela emoção do subconsciente, tão atarefado em manter-nos livres dos perigos de morte, que leva pela frente os inocentes “pólenes”. O meu sistema imunitário não tolera os pólenes. Deteta-os, declara-os perigosos, porque forasteiros, e expulsa-os, com recurso a espirros, lágrimas e outras secreções mucosas. Parece familiar? Ainda bem que não somos todos assim.