A metáfora ”À espera de Godot” emerge em tempos de crise e incerteza, desconhecendo-se o passo seguinte.
Nos pós II Grande Guerra, o mundo procurava uma nova ordem, saída da correlação de forças entre vencedores e vencidos.
Por essa altura, em 1952, a literatura foi surpreendida com a peça de Samuel Beckett, integrada na corrente que veio a ser conhecida por teatro do absurdo.
Nessa peça o tempo é factor determinante para a compreensão histórica do universo, uma eternidade imóvel e morta. Faz alusão à decadência e decrepitude física dos corpos, mais premente à medida que o tempo avança. O homem acaba por converter-se numa carcaça, representando a humanidade perdida, incapaz de interpretar a própria existência.
Na sua obra Malone morre, Beckett reitera esse confronto do homem com a própria decadência, olhando a morte nos olhos, sem vacilar, convertendo o pessimismo numa geografia da existência.
Também nós e o mundo, por mais que vamos às varandas das nossas casas bater palmas e dançar Resistiré do Duo Dinâmico, estamos condenados a esperar Godot que demora, que diariamente decide não vir ao nosso encontro numa rábula do teatro do absurdo.
Esta crise de incertezas quanto ao medicamento que tarda, à vacina que demora, à economia que resvala diante dos nossos olhos, representa a metáfora de Godot.
Ficam expostas as fraturas da nova desordem, da emergência dos países asiáticos que acumulam dinheiro, sem fazer, todavia, decrescer o número de pobres; fica exposto o caminho para a irrelevância dos Estados Unidos, que deixaram de ser a primeira potência económica, e as insuficiências dos serviços públicos de um Estado minimalista, que em nome de interesse económicos não considera a saúde e a educação como prioritárias para o povo; ficam expostas as feridas da União Europeia, dividida por interesses nacionais, não conseguindo expurgar do seu espaço ditaduras como as da Polónia e Hungria; uma Europa que perdeu o norte na dissolução do eurocentrismo. Ficam expostas as insuficiências da América Latina, dos milhões que vivem em favelas, dos milhões que apenas comem uma refeição por dia, da crescente desigualdade assente em democracias decadentes que perderam o rumo. O mesmos se diga das tragédias que emergem das cleptocracias africanas, indiferentes à saúde e à educação, à habitação e infra-estruturas, vivendo uma crise existencial pós-colonial.
O dinheiro, a ganância e o egoísmo venceram a cultura e as lições da História, enquanto permanecemos à varanda, “À espera de Godot”.